Papo sério

A guerra: um livro sobre medos, ambição, caos

por | 11 out, 2023 | cultura e esporte, papo sério

Em 2018 tivemos a oportunidade de visitar a feira do livro de Guadalajara, no México, uma das principais feiras de literatura do mundo. Essa feira tem um grande destaque para a literatura infantil e juvenil (LIJ) e, principalmente, para a ilustração em seus diversos desdobramentos. Naquele ano, como é comum nas feiras internacionais, Portugal seria o país homenageado. E teria um estande exclusivo para expor livros editados em território nacional.

Entre poesia e romances de escritores portugueses, havia um espaço para as publicações das casas editoriais voltadas para a LIJ, com editoras como Orfeu Negro, Planeta Tangerina. Em especial, estava aquela que viria a ser uma das grandes parceiras da Amelì: a editora Pato Lógico, fundada pelo escritor e ilustrador André Letria.

Durante a viagem, estivemos com Daisy Carias, criadora de conteúdo do site A cigarra e a formiga. Além de ser uma grande amiga, Daisy é uma leitora apaixonada pela literatura portuguesa. Enquanto folheávamos os inúmeros livros do estande português, ela nos chamou para mostrar um livro pelo qual era apaixonada.

Naquele momento não tínhamos ideia de que futuramente ele viria a fazer parte de nosso catálogo. Ficamos tenebrosamente impactados, no melhor sentido do termo, com um livro que tratava de um tema tão complexo, de uma forma que ainda não tínhamos visto em nenhuma outra publicação.

Bologna Children’s Book – Um ano se passou desde aquele primeiro contato com o livro A guerra, quando visitamos outra feira. Dessa vez, era uma das mais importantes no segmento de literatura no qual atuamos. A Bologna Children’s Book Fair é voltada à produção artística e ao mercado da literatura infantil e juvenil, com foco na ilustração. Durante a feira, Amélia e Daisy conheceram pessoalmente o editor da Pato Lógico, André Letria.

Mas o que ninguém esperava, é que, durante a viagem de volta para casa, Daisy expôs o desejo de produzir uma coleção de livros voltados para a discussão de temas importantes para a construção política e social das crianças e jovens no Brasil. Foi então numa conversa com André Letria, que também estava no aeroporto aguardando o embarque para Portugal, que surgiu a ideia de publicar A guerra em nosso país.

Foto: Rodrigo Erib

Por conhecer o cuidado que a Amelì tem com suas publicações, e por já termos fechado outro título da Pato Lógico em nosso catálogo (São Paulo, A minha cidade, de Andrés Sandoval), André sinalizou que poderíamos publicar o título em nossa casa editorial. Dali surgiu o selo da Coleção da Cigarra, uma parceria com a Daisy Carias. 

O impactoUm dos motivos de A guerra ter nos impactado como leitores e editores foi a complexidade apresentada no livro, tanto no que se refere à qualidade do texto escrito por José Jorge Letria, quanto principalmente no texto composto pelas ilustrações de André Letria. Quando escolhemos um título para compor nosso catálogo, uma de nossas maiores preocupações é o cuidado que o escritor e o ilustrador têm na composição de sua poética literária. Em A guerra, isso é feito de forma estrondosa, desviando de qualquer estrutura arquetípica e de juízo de valor em sua temática.

A grande dúvida que tivemos em relação à publicação do título no Brasil referiu-se à aceitação que um livro como esse teria com um público que não tem de forma direta a experiência com contextos desta natureza. Principalmente, por ser uma obra que foge do que estruturalmente se espera de uma obra de literatura infantil e juvenil.

Porém, pelo fato de o foco da editora ser justamente as linguagens presentes nestes segmentos literários, em especial a linguagem do livro ilustrado, foi possível compreender que A guerra seria um título que conseguiria fugir de uma classificação literária. Esse livro teria um potencial de alcançar inúmeros tipos de leitores, justamente por tratar de um tema que perpassa o imaginário e a realidade de diversos povos, comunidades e sociedades em diferentes formas e contextos.

Outro ponto importante a ser destacado foi o cuidado com o processo gráfico e de impressão do título. Tivemos uma grande atenção com as páginas duplas, pois toda a narrativa ocorre como um grande movimento cinematográfico, o que exige uma qualidade da visualidade dos espaços e territórios apresentados em cada virada de página.

Ao mesmo tempo, observamos que em nossas publicações (devido a questões gráficas) obtivemos uma qualidade melhor do aspecto visual nas páginas mais escuras do livro, o que possibilitou uma maior visibilidade dos seres e das formas que o ilustrador utilizou para personificar a guerra.

Durante a vinda de André ao Brasil, no festival FILEX EXPANDIDO, em Salvador, em 2020, conversamos sobre o processo de criação das ilustrações a partir dos fragmentos do texto que seu pai havia escrito. Curiosamente, ao invés de optar por uma ilustração que localiza e aponta um juízo particular de valor da guerra (em contexto étnico e nacional), André optou por criar a guerra como uma força que paira em sua paisagem, sendo este o real protagonista desse evento que atravessa a história da humanidade.

A ilustração – Para concretizar essa ideia, o ilustrador escolheu que o seu ponto de partida seria o que se materializa como fundamento dos medos humanos. Nesse sentido, os insetos, as sombras e a morte são a condição aterradora herdada como uma memória de nossos antepassados, que lidavam com esses contextos em tempos nos quais não tinham recursos para se defender dessas adversidades.

As formas de horror foram criadas por André por meio de uma série de criaturas sombrias e peçonhentas que se desdobram nas mais diferentes formas e faces. Longe de uma única identidade, a guerra como uma força é algo que adentra o corpo dos humanos e move suas ações conforme seus desejos de poder, e tal como um fungo ou um enxame de gafanhotos, devoram a vida e tudo que está ao seu redor.

Se existe algo importante a ser dito sobre A guerra, é que é um livro fundamental para se discutir o que a crítica literária aponta na atualidade como temas fraturantes. Esse é um termo que coloca em pauta os mais diversos contextos e eventos que promovem fraturas nas estruturas culturais e morais, no campo do real e do imaginário. Por isso, precisam ser discutidos e atualizados dentro das transformações e particularidades sociais nas mais diversas culturas, e principalmente em um país tão heterogêneo como o Brasil.


Lion Santiago e Amelì Jannarelli são editores da Amelì. Foto em destaque: Rodrigo Erib.

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