Papo sério

Um projeto de paz em Damasco no cessar-fogo de 2016

por | 11 out, 2023 | comportamento e saúde, papo sério

As cicatrizes da guerra não se curam; elas permanecem gravadas em cada parte de seu ser, deixando uma marca indelével que nem mesmo os cosméticos mais potentes podem apagar. Crianças são como vidro; uma vez quebradas, não podem ser reconstruídas como antes.

A guerra transforma o ferro em pó e o vidro em areia. É a maldição da geografia e da história. Fomos inseridos em uma narrativa de guerra e morte, como se não merecêssemos a vida como os outros. Queremos brincar, sonhar e crescer. Queremos nosso direito a uma vida com dignidade e liberdade.

Com estas palavras, eu queria começar a compartilhar nossa pequena experiência, minha e da minha esposa, na Síria, antes de partirmos em 2017. Nunca tentei participar da guerra; na verdade, a repudio. Não tenho medo da morte, mas tenho medo da vida. Isso me assombra todos os dias.

Todos os dias, penso nessas crianças que são inocentes, nascidas nesta geografia trágica, carregando este legado para transmiti-lo a seus filhos e netos, assim como herdamos esta longa e sombria história de conflitos. No verão de 2016, minha esposa e eu estávamos em Damasco, vivendo na área de Jaramana, no interior da capital. Essa área está situada na fronteira entre as zonas de conflito do governo sírio e a oposição armada.

Jaramana foi alvo de inúmeros ataques, bombardeios e explosões, resultando em muitas vítimas, principalmente mulheres e crianças que viviam na região. Até o momento da implementação deste projeto, a população da área era de aproximadamente um milhão e meio de pessoas.

O que era esse projeto? A ideia principal era ajudar as crianças da região a superar o medo e desfrutar de dois dias sem guerra ou medo dela. Durante esse período, várias partes na Síria concordaram com um cessar-fogo e desescalada, permitindo que a vida retornasse gradualmente à área.

Isso facilitou a execução do projeto, que durou três dias: o primeiro dia, para desenhar; o segundo, para esculpir e brincar com argila; e no terceiro dia, projetei algumas bonecas e apresentei a elas algumas peças de teatro de marionetes, com base em histórias escritas pelas próprias crianças.

Ao concluir este projeto, minha esposa e eu obtivemos inúmeras percepções sobre a mentalidade dessas crianças, a maioria das quais nasceu nos primeiros dias da guerra. Quando iniciamos este projeto, elas tinham apenas seis anos de idade.

Aqueles que experimentaram a vida antes da guerra frequentemente desenhavam ou compartilhavam histórias de saudade dos dias em que podiam sair com suas famílias, viajar e brincar sem medo. Por outro lado, para aqueles que nasceram durante a guerra, seus jogos e desenhos estavam intimamente ligados ao conflito. Por exemplo, alguns aspiravam a se juntar às forças militares para enfrentar os combatentes armados, enquanto outros retratavam armas de fogo, armas e aeronaves.

Este projeto deixou um profundo impacto em minha vida e talvez seja uma das razões pelas quais minha esposa e eu decidimos não ter filhos, com medo de seu futuro em um mundo tão tumultuado quanto o nosso.

Apesar de termos deixado a Síria há cinco anos, minha esposa e eu ainda pensamos nessas crianças. Embora tenhamos perdido o contato direto com elas, ocasionalmente nos deparamos com notícias sobre elas. Algumas abandonaram a escola e entraram no mercado de trabalho, enquanto outras conseguiram escapar da Síria com suas famílias em busca de refúgio em outros países.

Hoje, mais do que nunca, desejo que a paz prevaleça no mundo, exclusivamente em prol das crianças que suportam o peso mais pesado das políticas estabelecidas pelos poderosos, que continuamente nos asseguram que tudo o que fazem é em benefício das crianças.


Sou JIHAN KATISH, um refugiado sírio que mora no Brasil desde 2018. Atualmente trabalho na área de motion graphics e 2D animação. Na Síria, trabalhei como professor de design e técnicas de iluminação no Instituto Superior de Artes Dramáticas em Damasco. Fui um fotógrafo independente durante a guerra até 2018. Conheça meu trabalho em @jan_katish. A ilustração War faz parte do meu porfólio, que você pode acessar em https://jihankatish.myportfolio.com/.

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