Quando a foto do menino sírio Aylan Kurdi morto numa praia da Turquia estampou a capa dos principais jornais da Europa e das Américas, as manchetes remetiam a uma espécie de mea-culpa da sociedade. “A humanidade falhou”, “A imagem que envergonha o mundo”, “Fique envergonhado, mundo”, “Uma imagem que estremece a consciência da Europa”. Essas eram algumas das frases que tentavam buscar um responsável pela tragédia dos refugiados que se arriscavam na travessia do Mar Mediterrâneo, representados na foto pelo menino de apenas três anos de idade.
Afinal, naquele momento éramos todos culpados pela morte do menino Aylan enquanto humanidade? O mundo inteiro? Ou apenas os países e seus governantes?
Questões morais voltam a despertar mais perguntas quando o mundo assiste estarrecido à morte de milhares de crianças na Faixa de Gaza, praticamente em tempo real, durante a guerra entre Israel e Hamas. Como nações, temos o direito de condenar essas crianças à morte? É preciso um cessar-fogo imediato. Corredores humanitários. Ajuda emergencial. Comida. Água limpa. Remédios. Paz. Afeto.
Escrevi sobre a compaixão além das fronteiras em um artigo em 2019. Questionei se a foto do menino sírio seria emblemática para a situação dos refugiados. Como destaca Nietzsche, o sofrimento do outro produz efeitos no espectador. Destaco um trecho do que o filósofo argumenta, porque acredito que explica bem o que sentimos nesses momentos:
O contratempo sofrido por outra pessoa nos ofende, nos faz
sentir nossa impotência e talvez nossa covardia, se não
acudirmos em seu auxílio. … Ou na dor alheia vemos algum
perigo que também nos ameaça, pois ainda que só seja como
sinais da insegurança e da fragilidade humanas, os infortúnios
alheios podem produzir em nós penosos efeitos. Rejeitamos
esse gênero de ameaça e de dor e lhe respondemos por meio de
um ato de compaixão, no qual pode existir uma sutil defesa de
nós mesmos e até algum resquício de vingança. (Nietzsche,
1978, p.133)
Há sempre uma esperança de que haverá um plot twist na História. Só que não. A foto do menino é emblemática para nos lembrar de que continuamos selvagens. Bárbaros. As crianças de Gaza têm nos mostrado isso. Nunca viveram em outro contexto além de escassez, conflito e perigo. Há 18 anos o então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon retirou todos os colonos e militares de Israel da Faixa de Gaza, dizendo que não eram mais uma força de ocupação.
Só que, dois anos depois, com a eleição do Hamas, o governo de Israel impôs um bloqueio à toda a Faixa de Gaza. Portanto, os jovens de até 18 anos de idade hoje viveram a vida inteira num estado de privação. Acontece o seguinte: apesar de retirar colonos e militares, Israel ainda estaria com a obrigação prevista na lei de ocupação, de acordo com a Convenção de Genebra, sendo responsável por garantir alimentos, remédios e outros itens básicos para aquela população.
Após o ataque terrorista sem precedentes do Hamas, no entanto, as notícias são de que o bloqueio foi reforçado e itens essenciais à sobrevivência são negados à população civil. Falta de comida e de água limpa tem atingido de maneira mais grave as crianças, que adoecem com o sistema de saúde que entrou em colapso.
A pesquisadora Caitlin Procter, do Instituto de Pós-Graduação em Estudos Internacionais e de Desenvolvimento do Graduate Institute de Genebra, ressalta que seria um erro presumir que, mesmo antes do atual reforço do bloqueio, as crianças em Gaza desfrutavam de vidas saudáveis. O Unicef estima que há cerca de 1 milhão de crianças (de até 18 anos, de acordo com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança) vivendo na Faixa de Gaza, o que significa que quase metade da população local é composta por crianças. Quase 40% da população tem menos de 15 anos.
De acordo com Procter, as mais velhas terão vivido seis guerras, incluindo a atual, nas suas breves vidas (2008-9, 2012, 2014, 2021, 2022 e 2023). E a exposição regular a ataques militares diretos afeta a saúde física e mental dos jovens.
Desde que Israel impôs o seu bloqueio em 2007 até a guerra atual, a Defesa Internacional para as Crianças – Palestina (DCIP), uma organização palestina de direitos humanos focada especificamente nos direitos da criança, contabilizou 1.189 crianças palestinas mortas em Gaza por ataques militares israelenses. De 7 de outubro, data do ataque do Hamas a Israel até hoje, já morreram cerca de 3.500 crianças, segundo a UNRWA, a agência da ONU para refugiados palestinos. Ou seja, três vezes mais mortes em menos de um mês.
Temos um grande trabalho de consciência pela frente. O mundo não está sabendo construir uma resposta para as crianças de Gaza que precisam de ajuda urgente. O que ainda podemos fazer pelo futuro delas? Enquanto nacionalismo e populismo dividirem as sociedades entre “nós” e “eles”, a desumanização corre o risco de continuar prevalecendo.
Foto: UNICEF/UNI448902/Mohammad Ajjour – Gaza
Amal, 7 years old, contemplates her neighbourhood after neighbouring homes were levelled to the ground. No words can describe the devastation she sees. (Amal, 7 anos, contempla sua vizinhança depois de casas vizinhas serem levadas ao chão. Nenhuma palavra pode descrever a devastação que ela vê.)
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