Papo sério

Saint-Exupéry dos pequenos refugiados

por | 25 set, 2023 | cultura e esporte, papo sério

*Prefácio extraído do livro Narrativas de infâncias refugiadas: a criança como protagonista da própria história (Ed. Mauad), de Fernanda Paraguassu.

“Por favor … desenha-me um lar” disse, sorridente, o pequeno refugiado à exploradora dos universos pequenos.

Os pequenos refugiados são formas pequenas de vida; originalmente em todos os aspectos parecidas com as outras pequenas formas de vida. Têm o mesmo volume, a mesma massa, a mesma consistência e a mesma estrutura. Seus princípios físicos de funcionamento, seus mecanismos motores e seus agenciamentos indutivos são igualmente parecidos.

No entanto, quando observados de perto, os pequenos refugiados revelam peculiaridades sutis, mas profundas – que deixam claro o impacto das flutuações prolongadas sobre os organismos vivos em geral e as formas pequenas de vida em particular. Sua composição interna, por exemplo, evolui muito rapidamente com o decorrer do tempo; ainda mais quando se considera a relação proporcionalmente inversa entre as dimensões dos corpos em flutuação e a velocidade de suas temporalidades próprias.

Seus sonhos, desejos e temores, dentre outras secreções existenciais necessárias para a sua aderência material ao seu habitat original, vão se alterando de modo perceptível; principalmente quanto a seu gosto, sua coloração e sua tessitura. São quase: nem amargos nem doces; nem claros nem escuros; antes imprecisos e difíceis de definir. Parecem na expectativa, na espera, na esperança. Uma (forma de) vida em suspensão espacio-emocional

A aparência dos pequenos refugiados em flutuação também sofre importantes transformações. Às vezes, tendem a tornarem-se transparentes, translúcidos; quiçá translúdicos de tanto brincar de aparecer, desaparecer, reaparecer, transparecer…. Alguns, ao encontro de suas membranas com uma eventual fonte de luz, deixam-se atravessar por completo pelos raios UV (ultraviolentos); de tal modo que apenas a linha de contorno de sua silhueta permanece distinguível – um pouco à maneira como a polícia demarca a disposição e ponto de queda das vítimas de acidentes ou violência.

Outros, em função da acentuada perda de sua massa social, apresentam o conhecido sintoma de atrofia tridimensional: a inclinação somática tornarem-se cada vez mais bidimensional, sem volume e sem profundidade. Sem vontade de projetarem-se no futuro nem força suficiente para arraigarem-se no presente. Em casos extremos, os pequenos refugiados podem reduzir-se a uma linha só. A linha do tempo, a linha do trem, as linhas de demarcação ou as grades dos campos de refugados.

Entre terceira margem e lugar-nenhum, eles logo se dão conta de que o fato de serem desprovidos da terceira dimensão também representa vantagens: Eles podem driblar a vigilância das formas grandes de vida e transitar entre os traçados fictícios que, de tanto querer cercar e dividir os conjuntos e coletivos, acabam produzindo “conjuntos vazios” em série – vazio emocional, vazio existencial, vazio vivencial… As alfândegas do mundo relatam os inúmeros truques de camuflagem e os esconderijos mais improváveis dessas formas pequenas de vida em flutuação: falso fundo de painel de carro, embaixo de assento de ônibus, dentro de malas ou sacolas… Nenhum lugar é pequeno demais para nele não caber um pequeno refugiado… e seus desbotados sonhos.

Mas, como se sabe, as formas pequenas de vida são extremamente frágeis. Peças desencaixadas da engrenagem original, elas podem encontrar-se, a qualquer momento, na trajetória das recorrentes colisões entre formas grandes de vida; correndo o risco de serem percutidas, desconfiguradas ou arremessadas nas profundezas do espaço visceral. Sendo o alcance da projeção, não há dúvida, tributário dos preceitos da Física cataclísmica; principalmente a Lei da Gravidade: Mais grave for o movimento convulsivo, que desordena e reordena as formas grandes de vida e seus conjuntos narracionais, mais distante será o salto forçado dos pequenos refugiados.

Se, todavia, há tantos pequenos refugiados em relativo estado de conservação é devido às bolhas existenciais que os envolvem para prever choques excessivos e traumas irreversíveis. São, na verdade, pequenos universos portáteis que já vêm com um kit básico de sobrevivência: uma dose de afeto, um cheirinho familiar, um sorrisinho e um pouco de chocolate – apenas o necessário para a travessia, antes da noite cair.

De fato, as bolhas existenciais, num primeiro tempo, protegem. Mas, também isolam e limitam as capacidades conectivas dos pequenos refugiados. Motivo pelo qual, muitas vezes, parecem distantes, alheios à agitação que os cerca e continuam flutuando, quase despreocupados, no espaço visceral. Desfocados ou transparentes, bidimensionais e envolvidos em bolhas existenciais (que, na verdade, são pequenos universos portáteis), não é raro que os pequenos refugiados sejam largados e/ou perdidos na desordem maquínica que ritma o tempo das coisas.  

Sem esquecer da inevitável entropia que ameaça toda forma organizativa. As bolhas existenciais, como as bolhas de sabão, sempre acabam estourando. Daí toda a urgência em planear operações regulares de repescagem dos pequenos refugiados, antes que as bolhas desmanchem-se no ar.

Nossa exploradora dos universos pequenos, por sua parte, procura justamente compreender e desvelar a natureza material-imaterial das bolhas existenciais, seus modos de funcionamento, seus usos possíveis e as consequências de sua portabilidade a longo prazo. E, sobretudo, como extrair os pequenos refugiados das bolhas existenciais e inseri-los em conjuntos maquínicos adequados, sem interferir na produção sistêmica de afeto-carência, potência-fraqueza e amor-ódio.

“Por favor … desenha-me um lar” insistiu o pequeno refugiado.

Mas, o que é exatamente um lar? Perguntou-se, silenciosamente, a exploradora dos universos pequenos.

Lar é onde se nasce, se vive ou se morre? É pessoal e intransferível ou coletivo e cambiável? É particular ou universal? Evolutivo ou imutável? Qual é a sua consistência, sua tessitura? Tem forma e dimensões específicas? É portátil? Os depósitos de formas antigas de vida também podem ser chamados de lar? Os ninhos, as grutas e embaixo do viaduto também são lares? E, principalmente, todo lar tem lareira?

Será que o lar é o sorriso de mamãe? A voz de papai? A forma do corpo na cama? O gosto do pão-com-manteiga e café-com-leite? Ou é a sede, a fome e o medo? Lar também pode ser flutuante? Por que se precisa de um lar? Lar é mesmo doce? E se for salgado como o gosto das lágrimas? É sólido, líquido ou gasoso?

Então, como as formas de vida em flutuação podem ter um lar, querer um lar, sonhar com um lar? Aliás, é possível sonhar fora do “seu” lar? Talvez o lar fosse apenas uma miragem, uma ilusão estatística e um erro de ótica. Os nômades e andarilhos têm lar? Talvez o lar seja como o horizonte: mais para ele se ruma, mais ele se afasta?

E as formas de vida em flutuação que querem “voltar” ao lar? Será que o lar (caso exista) continua lá esperando por elas? O lar não viaja no tempo, como as formas de vida viajam no espaço? E se conseguirem voltar ao lar, seus sonhos, desejos, angústias e temores continuariam lá, ou esvaneceram-se no espaço visceral?

Entre indagações e divagações, a exploradora dos universos pequenos começou a suspeitar que lar não é algo construído, que vem a posteriori, que foi, ou pode ser, premeditado. Lar não tem início ou fim. Lar simplesmente é. É inerente a toda forma de vida e conjuga-se na primeira pessoa. Lar não é uma coisa, não é uma ideia, uma noção ou um conceito. É um sentimento, uma sensação; algo que sustenta o próprio fato de ser, precede-o e a ele sobrevive.

A exploradora dos universos pequenos começou a suspeitar…

Assim, antes que o pequeno refugiado voltasse a pedir que lhe desenhe um lar, ela lhe estendeu um envelope vazio de papel e disse: “Imaginemos que isto é um lar. Vazio. O que você colocaria dentro?”. Curiosamente, a pequena forma de vida em efervescência não disse nada, não perguntou o porquê nem se surpreendeu. Parece até que já sabia. Já sabia?

Intrigada, a exploradora dos universos pequenos começou a observar o empenho do pequeno refugiado em reconstituir e dar forma a esse sentimento vago chamado lar. Primeiro, a conexão mental. Em seguida, o fluxo imagético em direção ao envelope: um dinossauro, uma girafa, um elefante, montanhas, o mar, mamãe, papai, tio, tia, cachorrinho, gato, amiguinhos, vizinhos, chocolate, água gelada, bolo de aniversário, musiquinha de ninar, vovós, Alice, algodão doce, avião, mais chocolate, salgadinho crocante, jogos, floresta, lobo, sapatos novos, chocolate de novo….

O fluxo ininterrupto acelerava e densificava-se, as imagens-coisas ficavam cada vez mais reais e em três, quatro, cinco dimensões. O envelope parece conter o mundo e tudo o que o mundo contém – inclusive os envelopes que contêm o mundo. Mas como o envelope pode conter o mundo todo – inclusive os envelopes que contêm o mundo e onde os próprios envelopes são contidos?

A exploradora dos universos pequenos lembrou de um dos princípios básicos da Genética, Física Quântica e Teoria da Complexidade: o maior cabe no menor na mesma medida e proporção em que o menor cabe no maior. Por exemplo: o espécimen é derivado da espécie, ao mesmo tempo que toda a espécie encontra-se codificada numa única célula do espécimen. A língua é parte do mundo, assim como mundo está na língua. Ou ainda, a feijoada.

Looping semântico? Talvez mais. Se, tudo está no envelope, o envelope está no mundo e o mundo… Peraí! Não é o pequeno refugiado que interliga continente e conteúdo, devir e finalidade, princípio e causalidade? E se a conexão for interrompida?

De repente, a exploradora dos universos pequenos percebeu. Entendeu. É por isso que ele já sabia? De fato, ficou evidente (enfim, quase) que, na verdade (sim, falta definir a noção de verdade), o mundo é pressentido / sonhado / imaginado pelo pequeno refugiado. E, se o pequeno refugiado parar de sonhar e imaginar o mundo, o mundo simplesmente (provavelmente) parará de existir.

A exploradora dos universos pequenos não tinha mais dúvida: Não é o pequeno refugiado que precisa do mundo para sobreviver. É o mundo que precisa do pequeno refugiado para ser imaginado e continuar a existir.


Mohammed ElHajji é Doutor em Comunicação e Cultura e Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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