Papo sério

Refugiados desacompanhados enfrentam desafios para reconstruir a vida no Brasil

por | 19 maio, 2025 | comportamento e saúde, papo sério

Nos últimos três anos, cerca de três mil crianças e adolescentes venezuelanos entraram desacompanhados pela fronteira Norte do Brasil, em Roraima. O dado, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, se refere ao período de janeiro de 2022 a janeiro de 2025 e reflete o aumento do número de casos de menores de idade que chegam sozinhos ao país, principalmente após a pandemia de Covid-19. 

     O crescimento desse fluxo é um reflexo direto do agravamento da crise venezuelana. “Hoje vemos um padrão migratório extremamente jovem. No início da crise, vieram pessoas um pouco mais velhas, mas agora são majoritariamente adolescentes e jovens adultos em busca de melhores condições de vida”, explica Rachel Coutinho, professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ.

      Ao atravessarem a fronteira, os jovens desacompanhados passam inicialmente por um processo de identificação realizado pela Polícia Federal, que notifica a presença do menor de idade sem o acompanhamento de um responsável e encaminha o migrante para um trabalho de escuta qualificada feita por equipes do Ministério do Desenvolvimento Social e do Unicef.

    Mas a porta de entrada principal, Pacaraima, em Roraima, expõe as primeiras falhas do sistema. Na análise de especialistas, a identificação inicial, feita pela Polícia Federal, é controversa. O defensor público federal e pesquisador João Chaves relata algo que o chocou: a PF alega não poder entrevistar crianças diretamente. 

“Quando ela diz isso, ela está negando a proteção à criança. O menor que está ali pode ser, por exemplo, vítima de tráfico de pessoas, ou pode estar numa situação de exploração sexual. A polícia diz que não tem nenhuma qualificação técnica para entrevistar crianças, e em vez de procurar essa qualificação, afirma que não pode. Isso é um problema muito grave que a gente vê.”

     Após o processo inicial, os menores desacompanhados são acolhidos em abrigos temporários, como a chamada “Casa Lar”, onde têm acesso a alimentação e atendimento psicossocial. Neste intervalo, equipes atuam na tentativa de localizar parentes dos adolescentes ou crianças migrantes em território brasileiro. A coordenadora de Atenção a Migrantes e Refugiados no Sistema Único de Assistência Social, ligado ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Niusarete Lima, afirma que o objetivo inicial é sempre buscar a reunificação familiar: “Tentamos, sempre que possível, não separar as famílias”, diz. 

Crianças venezuelanas brincam no Abrigo Pintolândia, em Boa Vista. Foto: João Laet/UNICEF

      Nos casos em que a reunificação não é possível, o adolescente é encaminhado para abrigos institucionais. A partir daí, ele passa a ter acesso às principais políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes no Brasil, ou seja, passa a receber suporte para estudar, participar de programas como o Jovem Aprendiz e, quando necessário, realizar a transição para a vida adulta de forma segura.

Há, inclusive, casos em que os adolescentes desacompanhados passam por um processo de emancipação, quando já têm idade próxima dos 18 anos. Niusarete explica que o processo é cuidadoso e tem como objetivo dar mais autonomia ao jovem: “Muitas vezes, a partir dos pareceres sociais que nós fazemos, o juiz prepara um termo de emancipação, para que o adolescente possa ter autonomia para trabalhar, sabe? Mas isso é tudo muito bem avaliado e só ocorre nos casos em que os nossos profissionais avaliam que o jovem já tem maturidade suficiente para isso”. 

       Apesar de dar mais autonomia e liberdade ao jovem, o processo de emancipação não tira dele os direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Essa emancipação não significa dizer que a criança deixa de ser adolescente ou adquire a maioridade, isso é um erro. Ela continua sendo protegida pelo ECA até ter 18 anos. Eu faço sempre a comparação com o título de eleitor: o fato de se votar a partir dos 16 não transforma a pessoa em maior de idade, não exclui a proteção do ECA, nem transforma a pessoa em imputável para fins penais. Isso só permite que o adolescente pratique a ação da vida civil”, alerta João Chaves. 

Exemplo para o mundo: o caso da Operação Acolhida

     Para responder à crise migratória, o governo brasileiro criou a intitulada “Operação Acolhida”, em 2018. A iniciativa é elogiada internacionalmente. No entanto, apesar da legislação avançada, que inclui um Estatuto dos Refugiados e uma nova Lei da Migração, de 2017,  Rachel pondera que a resposta aos casos de migração, especialmente envolvendo crianças e adolescentes, ainda carece de efetividade. “O Brasil tem um arcabouço jurídico progressista, mas muitas vezes a prática não reflete essa estrutura institucional”, diz. 

       Ainda que a Operação Acolhida tenha estruturado parte da recepção, a realidade impõe desafios significativos. O defensor público federal Matheus Nascimento atua no Grupo de Trabalho de Migrações, Apatridia e Refúgio da Defensoria Pública da União. Ele alerta que a falta de consolidação de políticas públicas em estados e municípios agrava a vulnerabilidade dos jovens que chegam ao país desacompanhados: “O acesso a direitos como saúde, educação, previdência e trabalho depende da estrutura local. Sem conhecimento e preparo, os gestores dificultam a integração dessas crianças e adolescentes”, afirma.

        Além disso, os especialistas analisam que a ausência de políticas eficazes contribui para a perpetuação da xenofobia estrutural, reforçando percepções equivocadas de que migrantes “roubam empregos” ou “sobrecarregam o sistema público”.

      Em contextos mais críticos, adolescentes em situação de rua ficam expostos a riscos de aliciamento por organizações criminosas, como já identificado em Roraima. “Existem organizações criminosas venezuelanas com braço no Brasil que cooptam adolescentes vulneráveis. Por isso, a atuação da Defensoria Pública, do Ministério Público e dos Conselhos Tutelares é fundamental para proteção imediata”, destaca Matheus.

       Ao falar sobre a atuação de conselheiros tutelares no contexto da imigração de menores de idade, no entanto, o defensor João Chaves faz um adendo: muitos profissionais não têm capacitação suficiente para atuar no tema. “O Conselho Tutelar tem uma participação relevante, até por ser mais democrático, uma vez que ele tem a participação da comunidade. Mas o que a gente sabe é que os conselhos tutelares em geral não estão preparados para lidar com temas de imigração. Existe muita dificuldade, por exemplo, de compreender determinadas situações interculturais”, argumenta. 

Da dificuldade à estabilidade: casos de sucesso

      Apesar dos desafios, muitos adolescentes conseguem se adaptar e iniciar uma nova vida no Brasil. Programas de acesso à educação e capacitação profissional têm possibilitado novas oportunidades. Niusarete Lima compartilha casos de sucesso, como o de um jovem refugiado que hoje cursa ensino técnico em um Instituto Federal. “É muito bom ver casos de vitória como o desse menino, que chegou aqui adolescente e hoje está estudando o que sonhava em uma instituição pública”, conta. 

       Há, também, casos em que as equipes do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social conseguem localizar familiares dos refugiados, permitindo a reunificação, como explica Niusarete Lima: 

“Essa semana uma colega foi levar dois garotos lá no Rio Grande do Sul. Localizamos o pai dele lá. Ele foi procurar emprego, deixou as crianças em Boa Vista numa casa alugada com uma pessoa, a pessoa foi embora e deixou os adolescentes lá. E aí eles foram procurar ajuda. A gente localizou o pai e foi levar os filhos até ele. Então, é lindo quando você chega lá e vê o pai, cheio de balões coloridos, dando boas-vindas para os filhos. É uma coisa que até me emociona, sabe? Assim, você dá a oportunidade desse resgate para os familiares e também a chance de possibilitar que essas famílias consigam reconstruir sua vida.”

       Além do Governo Federal e da UNICEF, empresas e organizações nacionais e internacionais como a Associação Voluntária de Serviços Internacionais (AVSI) também desempenham um papel importante na resposta humanitária a refugiados e migrantes no Brasil. A AVSI, por exemplo, é uma organização sem fins lucrativos que faz o trabalho de identificação, rastreamento e monitoramento das famílias em situação de migração. 

      Na avaliação de João Chaves, a garantia de acolhimento eficiente e responsável das crianças e adolescentes que chegam desacompanhados ao Brasil passa pelo fortalecimento das partes envolvidas: “A gente não tem que pensar num órgão, mas no sistema de garantias do ECA. Tem um sistema complexo, que é fruto de um trabalho de muitos anos que envolve poder judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público, conselhos tutelares, os conselhos locais de defesa de crianças e adolescentes… Então, eu acho que tem que se fortalecer esse trabalho em rede dentro do sistema de garantias”, resume. 

     De acordo com o Governo Federal, a demanda por refúgio no Brasil segue crescente. Atualmente, cerca de 7.000 pessoas vivem em abrigos coordenados pelo MDS na região Norte – metade delas, crianças e adolescentes, a maioria acompanhada por familiares. Além disso, o fluxo de migração segue ativo: de acordo com a pasta, cerca de 300 pessoas seguem atravessando a fronteira diariamente no Norte do país e chegam ao Brasil em busca de refúgio e de melhores condições de vida. 

Foto em destaque: Crianças em uma Casa Lar em Roraima. Foto: Raoni Lobótio/UNICEF

Leia também: A adaptação silenciosa: Crianças migrantes no Rio e a batalha pela língua e pelo acolhimento


Por Felipe Braz, Guilherme Faria e Nina Ribeiro (Alunos de Laboratório de Inovação e Empreendedorismo da Escola de Comunicação da UFRJ), sob supervisão de Fernanda Paraguassu.

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *