De voz suave e fala potente, a jovem venezuelana Manuelys Quiaragua (foto) subiu ao palco e ficou gigante para discursar durante a abertura do I Encontro Internacional de Infâncias Protagonistas, realizado entre os dias 4 e 6 de outubro de 2023, na Universidade de Brasília (UnB). “Há um ano, fui a criança e jovem a ser escutada e agora eu sou a pesquisadora deste lindo projeto”, declarou a jovem, hoje com 18 anos de idade, aluna do 3º ano do Ensino Médio e integrante da Rede de Infâncias Protagonistas, projeto sediado no Departamento de Artes Cênicas da UnB.
Manuelys chegou ao Brasil há dois anos com a família por Roraima. Morou um ano em abrigos de Boa Vista e foi encaminhada para o Centro de Acolhida Casa Bom Samaritano, em Brasília, onde ficou por três meses, até começar seu caminho no país. “Neste projeto, aprendi muito sobre troca de cultura, de linguagem…”, disse a estudante.
Segundo a coordenadora da Rede, Luciana Hartmann, o projeto surgiu de uma demanda observada nos últimos anos, com a mudança no panorama migratório brasileiro. A feminização do processo de migração teve um impacto nas escolas. “Como educadoras, queremos participar desse diálogo”, afirmou Luciana.
O projeto tem a especificidade de trabalhar com as linguagens artísticas. “Acreditamos que, pelas linguagens artísticas, esse acolhimento pode se dar de forma bastante rica, produtiva, porque não precisamos, necessariamente, que compreendamos nossos idiomas”.
“Cantando, dançando, contando histórias com imagens podemos nos entender”, Luciana Hartmann.
A Rede atua em três frentes de trabalho: levantamento bibliográfico e estatístico para obter dados efetivos sobre o número de crianças migrantes e refugiadas nas escolas; formação continuada das professoras da educação básica que recebem crianças que falam idiomas pouco conhecidos em nosso país, como persa ou hindi; escuta das crianças. “Não faremos nada sem elas”, disse Luciana.
Nesse sentido, Manuelys, bolsista de iniciação científica, destacou que pensa muito nas crianças que chegam desacompanhadas. “É um processo difícil para elas, porque estão desacompanhadas em um país diferente, com língua diferente, e o acolhimento é nosso. Porque somos de países diferentes, mas somos irmãos. Irmãos do mesmo mundo. Cada criança é o futuro do país”, afirmou a jovem.

Foram dois dias de apresentação de trabalhos de diferentes lugares do país e do exterior e um dia de oficinas de atividades. Na plenária de encerramento, foi discutida a criação de uma comissão para encaminhar ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) propostas para a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia.
Durante o evento, a língua foi destacada como a maior barreira para a integração das crianças migrantes nas escolas, além da necessidade de apoio às professoras da Educação Básica. E a interculturalidade, ou seja, a importância de não se apagar aspectos da cultura de origem da criança, foi outro aspecto bastante ressaltado durante o evento.

Na opinião da Irmã Rosita Milesi, do Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH), a educação intercultural desde o Ensino Fundamental é importante para a construção de uma sociedade com menos xenofobia. “O material escolar deveria trabalhar isso como algo natural”.

A coordenadora-geral de promoção dos direitos das pessoas migrantes, refugiadas e apátridas do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, Clarissa Carmo, destacou a importância de trazer a perspectiva da interculturalidade para pensar se nossas políticas estão dando conta da diversidade do mundo e da infância.
Segundo ela, precisamos repensar nossos tempos de trabalho e avaliar se uma criança afegã, por exemplo, será realmente capaz de se inserir em uma metodologia tão hermética em poucos meses. As crianças e adolescentes trazem desafios e oportunidades para, de acordo com Clarissa, repensarmos nossos fluxos e políticas. “A pessoa migrante é um patrimônio histórico, cultural, linguístico e de memória”, afirmou.
“A pessoa migrante é um patrimônio histórico, cultural, linguístico e de memória”, Clarissa Carmo, MDHC.
Dessa forma, a pesquisadora do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) Tânia Tonhati adiantou que, por conta das particularidades do aumento da entrada de mulheres e crianças em território brasileiro, o relatório deste ano trará um capítulo específico sobre crianças e adolescentes, que será divulgado em dezembro de 2023.
Segundo Tânia, é possível observar, em 2022, o retorno da movimentação de crianças pela fronteira em patamar mais elevado que o registrado em 2019, antes da pandemia de Covid-19. “As bases de dados não são pensadas para serem produtoras de dados sobre migração. Mas já se avançou muito em relação ao conhecimento. Antes, a principal entrada de migrantes era por motivos de trabalho”, disse. Com a entrada de mais jovens, houve a necessidade de reorganizar as categorias dentro das bases do OBMigra.
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