Foto: Professora Maristela dando aula (Arquivo pessoal)
A professora Maristela Farias, de 52 anos, cresceu no município de Canoas, no Rio Grande do Sul, e, por meio de uma bolsa de estudos, se formou em magistério no ensino médio profissionalizante do Colégio São Paulo, em 1987. Vinte e oito anos depois, passou a trabalhar com voluntariado por influência de uma colega da faculdade de Psicologia. Maristela participou de um mutirão para ajudar as pessoas de uma cidade vizinha que tinha passado por uma enchente e, ainda em 2015, foi convidada para atender em uma comunidade do seu bairro que também havia sofrido com o desastre ambiental. O trabalho voluntário, então, se tornou um caminho sem volta para a professora, que não pensa em retornar às salas de aula.
No Dia das Mães de 2016, o acolhimento de Maristela chegou a um grupo de haitianos que moravam nas proximidades de sua casa. Ela os convidou para escolher roupas, mas eles tinham dificuldade para se comunicar porque não falavam português. Com isso, a professora combinou de ensinar o idioma aos vizinhos migrantes. “Sempre que eu chegava, eles sorriam muito para mim, eles tentavam se comunicar sorrindo, sempre muito simpáticos. Eles acenaram para mim, eu abri a janela do carro, dei um ‘oi’ e vi que eles não falavam nada de português. Um deles explicou que o idioma que eles falavam é o crioulo haitiano e escreveu para que eu conseguisse entender. Acho que ele escreveu em inglês, não lembro bem como foi. Sei que a gente chegou à conclusão de que poderíamos usar o Google Tradutor”, contou.
O sucesso das aulas fez com que, no segundo semestre de 2017, Maristela fosse convidada para participar de um projeto no Centro de Apoio Social e Integração para Migrantes (Casim), vinculado à Igreja Adventista. Após desavenças, a professora passou a lecionar para o Português e Cidadania para Migrantes, iniciativa da Prefeitura de Canoas. Além de haitianos, a magistrada já atendia venezuelanos, colombianos, argentinos, sírios, entre outras etnias. Em 2019, após o encerramento do projeto, Maristela voltou a dar aulas em casa e deu início ao material que se tornou o Manual Integra.
“Inicialmente, era um manual que tinha três idiomas: português, espanhol e crioulo. O objetivo era montar com os alunos e a gente fez isso: aulas de português com o objetivo específico de, a cada aula, criar uma página ou um capítulo desse material. A gente tinha as aulas e os alunos traduziam, alguns a distância, e tinha um grupo de WhatsApp. Aula presencial às sextas-feiras e o grupo, onde os alunos complementavam ao longo da semana com aquilo que a gente começava na aula. Assim, a gente criou o grupo que gerou o Manual Integra, que ficou pronto no final de 2019”, explicou.
O Manual Integra é um guia prático de comunicação com palavras e expressões, construído com a colaboração de estudantes e voluntários. As traduções foram feitas por falantes nativos de cada idioma e apresentam algumas peculiaridades que, muitas vezes, não podem ser encontradas nos dicionários e aplicativos de tradução. Com apoio da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e do Fórum Permanente de Mobilidade Humana do estado, o material foi distribuído gratuitamente para o público da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, em novembro de 2023. O evento contou com uma sessão coletiva de autógrafos, com a participação da professora e demais colaboradores.
Em 2020, a jornalista Adriana Sangalli convidou Maristela para integrar o Identidades – Cultura Global em Movimento, iniciativa pautada no trabalho voluntário com objetivo de oferecer cursos e capacitações a migrantes. Com isso, a professor passou a dar aulas de Português de maneira on-line. A oportunidade também serviu para enriquecer o Manual Integra, já que as línguas inglesa e francesa foram incluídas por meio de sugestões de alunos, além da portuguesa, espanhola e crioula haitiana que já estavam no material.
A experiência de Maristela, tanto no voluntariado como nos 20 anos em escolas públicas, também contou com desafios. A professora explica que, em certos momentos, ouviu questionamentos externos por não ter se formado no curso de Letras. No entanto, manteve a confiança naquilo que podia colaborar com os alunos, sempre deixando claras quaisquer que fossem suas limitações. “Desafio, na verdade, em um momento, foi manter a firmeza, sentir a importância do meu trabalho apesar de algumas pessoas não darem o devido valor, como não dão até hoje. Mas eu consigo superar essa insegurança, eu percebo uma empatia dos alunos muito grande”, destacou,
“Eles entendiam que, mesmo eu não falando outro idioma, eu podia colaborar com aquilo que eu podia dar. Eu deixava claro para eles minhas limitações e, quando me traziam um questionamento que eu não tinha a resposta na hora, eu sempre dizia que ia pesquisar, procurar ajuda e, depois, trazia a resposta”, complementou.
Outra dificuldade do voluntariado está no choque cultural, de acordo com a professora. Em outras culturas, por exemplo, Maristela percebia que havia visões mais machistas a respeito da sociedade. “A gente tinha que lidar com isso de uma forma que todos fossem acolhidos, mas que também ficasse bem claro para eles as regras do Brasil, como ele funciona, as leis, o que é permitido, o que não é. E aos poucos levando para eles a ideia de que o melhor para eles viverem bem no Brasil era abrir a mente, não manter a mente fechada, rígida. Manter a sua cultura, mas também ter abertura para novas possibilidades e aprendizagens.”
Mesmo com as dificuldades, Maristela carrega o orgulho de ter sido a responsável por levar ensinamentos que vão além do idioma para inúmeros imigrantes. “O maior impacto não é o idioma. Acho que tudo que a gente trabalhava nas aulas eles podia encontrar na internet – aulas melhores inclusive. Mas o impacto mesmo é cultural e de inclusão social. Impactar a vida de uma pessoa para que ela se sinta segura, que ela veja em ti alguém em quem confiar”, concluiu a professora.
Por Caroline Simões, Milene Gabriela, Frederico Vidal, Gustavo Becker e Jean Carlos de Souza, estudantes da disciplina de Laboratório de Cidadania, do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ministrada pela Profa Fernanda Paraguassu.
Sob supervisão de Fernanda Paraguassu.
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