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Pensatas sobre migração e refúgio na infância e adolescência

Por Fernanda Paraguassu

Os direitos da criança no Fórum Global sobre Refugiados

por | dez 15, 2023 | viu isso?

Na primeira edição do Fórum Global sobre Refugiados, realizada em 2019, 83% dos compromissos firmados pelos países participantes não tinham crianças no centro de seus objetivos. Quatro anos mais tarde, os organizadores comemoraram a marca de 85 compromissos assumidos por 11 países exclusivamente voltados para crianças de zero a 18 anos, segundo definição da Convenção Internacional de Direitos das Crianças.

O Brasil, por sua vez, não fez parte de nenhum deles, mesmo identificando um expressivo aumento de crianças e adolescentes imigrantes e refugiados no país, segundo Relatório Anual de 2023 divulgado no início de dezembro pelo OBMigra em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

De maneira inédita, a edição deste ano do relatório do OBMigra incluiu um capítulo sobre crianças e adolescentes na imigração internacional no Brasil, justamente por observar uma mudança na configuração do fluxo migratório para o país. Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, criança tem de zero a 11 anos de idade completos, e adolescente, de 12 a 18 anos.

Nos primeiros anos de existência do OBMigra, que acaba de completar uma década, a imigração era muito masculinizada e adulta. Em 2022, os dados mostraram uma feminização do movimento, com a entrada de mais crianças e adolescentes no país. A maior parte (94%) vem da Venezuela, seguida de Cuba, Síria e Iraque, com 1% cada um. A maioria dos adolescentes é formada por meninos.

A compilação desses dados foi possível a partir do cruzamento de três bases distintas: o Sistema de Registro Nacional Migratório (SISMIGRA); o Sistema de Tráfego Internacional (STI-MAR); e o Sistema do Comitê Nacional para Refugiados (SISCONARE). Com isso, o governo brasileiro começa a esboçar um panorama migratório desse grupo etário.

“Para que novos estudos e evidências sejam fomentados, é preciso que haja a ampliação do acesso às informações relativas à caracterização migratória, assim como aos dados sobre saúde, educação, proteção social de crianças e adolescentes imigrantes e refugiadas no Brasil”, destacam Zakia Hachem e Tânia Tonhati, que assinam o capítulo no relatório.

Entre os compromissos assumidos pelo Brasil no Fórum Global sobre Refugiados que podem afetar crianças, apesar de não ter esse grupo etário como objetivo específico, estão: o aprimoramento do direito à reunificação familiar; a implementação da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia; a implementação da Política Nacional de Saúde de Pessoas Refugiadas; a prevenção e erradicação da apatridia na região.

A embaixadora Maria Laura da Rocha, secretária-geral de Relações Exteriores, ressaltou no plenário do Fórum que o Brasil tem orgulho de sua tradição humanitária e de sua legislação de imigração e refúgio. Ressaltou a diversidade dos países que acolhe, e o fato de refugiados terem acesso aos mesmos direitos que os brasileiros no país, como educação, saúde, moradia e oportunidade de emprego. Destacou ainda que o Brasil ampliou sua política de acolhimento humanitário para outras situações, como mulheres e meninas vítimas de mutilação genital.

Segundo a presidente do Conare, Sheila de Carvalho, o Brasil se consolida como “referência global em política de refúgio para atendimento de solicitações de pessoas refugiadas, especialmente de políticas de grupos sociais em situação de maior vulnerabilidade, como afrodescendentes, mulheres em contexto de alta violência de gênero, pessoas LGBTs criminalizadas por sua existência”. Segundo Sheila, as crianças não estavam no radar do governo para selecionar os compromissos para o Fórum por conta da falta de dados. A partir do momento em que as informações sobre o grupo etário começam a ser organizadas, ela diz que as propostas serão estudadas.

Contexto – Atualmente, há mais de 114 milhões de pessoas em situação de deslocamento forçado em todo o mundo, sendo que 40% são crianças. Entre 2018 e 2022, mais de um milhão de crianças nasceram como refugiadas. A maioria das crianças hoje deslocadas passará toda a sua infância em deslocamentos prolongados.

É consenso no debate internacional que as crianças fazem parte do grupo de maior vulnerabilidade. Enfrentam riscos de separação familiar, trabalho infantil, casamento infantil, e outras formas de abuso, exploração e violência. Portanto, a criança tem demandas diferentes de um adulto e o direito a ser protegida contra todo tipo de violência.

Apesar da urgência, o mundo não está adotando a celeridade necessária para a sua proteção. Um levantamento feito pelo ACNUR revela que existe uma lacuna enorme entre o montante solicitado (US$ 154,5 milhões) e o efetivamente aplicado pelos planos de resposta aos refugiados (US$ 37,5 milhões) na proteção da criança, especialmente para seis regiões: Afeganistão, República Democrática do Congo, Sudão do Sul, Sudão, Síria e Ucrânia.

Colaboração – O Fórum Global sobre Refugiados é uma oportunidade crucial para garantir que as crianças estejam no centro dos compromissos sobre a inclusão dos refugiados. Para estimular ainda mais a comunidade internacional, foi criado o Child Rights Pledge – Compromisso dos Direitos da Criança. A ideia é promover uma colaboração entre as partes interessadas com um objetivo comum de garantir a inclusão não discriminatória das crianças e o acesso a sistemas e serviços nacionais e locais de qualidade para que elas:

– Sejam protegidas da violência, do abuso e da exploração;

– Possam participar significativamente nas decisões que afetam as suas vidas;

– Tenham acesso a serviços essenciais e sensíveis às crianças, incluindo proteção social, cuidados de saúde e saúde mental e apoio psicossocial; e

– Tenham acesso a educação pré-escolar, primária, secundária e superior num ambiente protetor.

Nesta edição do Fórum, pela primeira vez, quatro adolescentes participaram de forma ativa do evento e representaram as milhões de crianças refugiadas no mundo. Eram Naya e Sedra da Síria, Sophia e Maxim da Ucrânia. Os quatro tiveram a oportunidade de mandar seus recados e foram enfáticos ao afirmar que precisam ser escutados e que querem participar das decisões que afetam suas vidas.

Naya, a menina síria de 16 anos que atualmente mora na Holanda, resumiu em poucas palavras como uma criança é afetada pelo refúgio. “Uma criança não vê o refúgio pela perspectiva da política, mas pela lente do sentimento”. Ela quer “cuidado, respeito e dignidade”, completou Naya.  

Manifesto – Sedra, de 15 anos, foi uma das adolescentes refugiadas que assinou o Manifesto da Juventude, apresentado durante o Fórum deste ano. No documento, os jovens afirmam que suas vozes são potentes e essenciais. Lembram que são profundamente afetados por questões globais e querem compartilhar suas visões para o futuro.

“Queremos que nossas vozes não sejam apenas ouvidas, mas que sejam um fator decisivo na mudança global.”

Manifesto

Entre os desafios que enfrentam, destacam o sexismo, o racismo e a falta de oportunidades. Querem seguir estudando, trabalhar legalmente e integrar-se à sociedade. Pedem acesso à documentação e ressaltam as políticas que restringem a liberdade de movimento e os mantêm confinados em campos de detenção, dificultando o desenvolvimento de seu potencial, bem como o acesso a direitos humanos básicos e perspectivas de futuro.

Instam os governos, as ONG, as organizações humanitárias, a comunidade e outras instituições educacionais e privadas para:

– Alocar recursos financeiros e materiais duráveis para garantir uma vida inclusiva e oportunidades educacionais equitativas para todos os refugiados;

– Garantir que os jovens refugiados em campos e assentamentos urbanos recebam os documentos necessários, permitindo-lhes o acesso à educação;

– Priorizar a igualdade e a diversidade de gênero em todos os compromissos e iniciativas, oferecer às meninas refugiadas uma educação acessível e de alta qualidade, adaptada ao seu ambiente e às suas experiências;

– Apoiar as jovens mães e os seus filhos, garantindo que possam completar os estudos e receber cuidados psicológicos adequados;

– Combater a violência contra meninas e mulheres jovens refugiadas, promovendo educação transformadora de gênero;

– Prevenir e abordar ativamente exploração e abuso com mecanismos especializados, políticas e intervenções;

– Estabelecer leis e políticas que capacitem os jovens refugiados a garantirem emprego e sustentar-se;

– Implementar programas de educação e empreendedorismo baseados em evidências, incluindo programas que abordam a violência baseada no gênero.

Sugestão MiRe – A próxima edição do Fórum Global sobre Refugiados será em 2027 e o Brasil terá a oportunidade de se comprometer com iniciativas que abordam os direitos da criança especificamente ou, se estiver envolvido em outros compromissos multissetoriais, pode se comprometer a atender a necessidades específicas das crianças ou de serviços sensíveis às crianças como parte desses compromissos.

Ou seja, dentro de compromissos gerais, pode mencionar intenções específicas relacionadas a esse grupo etário. Por exemplo, pode se comprometer com ações centradas na criança em cuidados de saúde e saúde mental e apoio psicossocial, proteção social e violência de gênero ou outros compromissos multissetoriais relevantes.

Além de iniciativas com base no Manifesto, MiRe analisou os compromissos assumidos pela organização Save the Children no Fórum de 2023 que podem contribuir para direcionar eventuais compromissos do Brasil voltados à criança. Vale ressaltar que os compromissos não precisam ser financeiros. Podem ser leis, políticas públicas ou até mesmo advocacy. Também não precisam ser sempre adotados pelo governo federal. Pode ser agência humanitária, setor privado, academia ou sociedade civil. Veja os compromissos da Save the Children relacionados aos direitos da criança e os comentários que fizemos em itálico:

– Ação de curto prazo para benefício de longo prazo: promover o rápido acesso a oportunidade de aprendizado para crianças refugiadas recentemente deslocadas;

O Brasil permite o acesso rápido de refugiados sem documentos a escolas, o que não significa que há sempre vagas disponíveis. Mas isso é outro assunto.

– Apoiar professores;  

O apoio a professores é um tema recorrente no debate entre estudiosos no Brasil. Muitos professores que recebem crianças refugiadas em salas de aula atuam na base do bom senso. Não há treinamento.

– Apoiar a inclusão de refugiados, particularmente aqueles mais afetados por desigualdade e discriminação, no sistema nacional de ensino:

Casos de racismo e discriminação por conta do país de origem são relatados por refugiados. Informação e treinamento de equipe contribuem em casos como esses.

– Oferecer apoio para a saúde mental e suporte psicossocial;

Resposta para situações de trauma em que há rompimento de laços afetivos e dificuldades de integração.

– Fortalecer sistemas de proteção à criança em contexto humanitário;

Prevenir todo tipo de violência contra a criança.

– Apoiar a participação de crianças e adolescentes em tomadas de decisão que afetam sua qualidade de vida.

A Save the Children vai aumentar a conscientização de crianças e adolescentes refugiados sobre seus direitos a participarem e se expressarem através de um resumo sobre o assunto em linguagem adequada para eles. A ideia é que as crianças sejam realmente agentes de mudança.


Foto: Fernanda Paraguassu (Naya, Sedra, Sophia e Maxim)

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