Os números alarmam e se fazem notar. De acordo com o Global Trends Report 2022, do Acnur, agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados, o ano passado se encerrou com o índice de 108,4 milhões de pessoas forçadas a deixarem seus países de origem em razão de perseguição, conflito, violência, violação de direitos humanos e eventos relacionados. A mesma instituição sublinha que, até maio de 2023, esse total ultrapassou a marca dos 110 milhões.
Por aqui, em São Paulo, onde fixei residência há dez anos, são muitas as nacionalidades nessas mesmas condições de vulnerabilidade e em busca de acolhida. De acordo com o Relatório Mensal do Instituto Adus, disponível em sua seção de Transparência, somente em agosto de 2023, 34 países receberam atendimento pela entidade sem fins lucrativos, com 13 anos de atuação: Afeganistão, África do Sul, Angola, Argentina, Bangladesh, Benim, Bolívia, Camarões, Chile, Congo, Colômbia, Cuba, Gana, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Haiti, Honduras, Líbano, Mali, Marrocos, Moçambique, Namíbia, Nigéria, Palestina, Paquistão, Peru, República Democrática do Congo, Serra Leoa, Síria, Togo, Turquia, Ucrânia, Uruguai e Venezuela.
Hispânicos tendem a se adaptar com mais facilidade pela proximidade entre os dois idiomas de base latina. Entretanto, o ensino da língua portuguesa em si, como apresentada em escolas convencionais, pode não bastar para muitos desses migrantes, sejam eles classificados como refugiados, solicitantes de asilo ou acolhida humanitária, como prevê a Lei da Migração (nº 13.445/2017).
Como pensar em uma metodologia de ensino da nossa língua materna – o português brasileiro, com suas particularidades e peculiaridades – para uma parcela demasiadamente vulnerabilizada? Um novo idioma pode ser uma tecnologia que possibilitaria a inserção em um novo círculo de sociabilidade, tangendo esferas como trabalho, educação, moradia, acesso a saúde e a direitos básicos, em tese, assegurados pelo Estado a quaisquer cidadãos.
O conceito de Português como Língua de Acolhimento – a sigla Plac, como se convencionou no terceiro setor – nasceu no fim dos anos 1990, em Portugal, devido ao grande fluxo de imigrantes do Leste Europeu, principalmente ucranianos, rumo à Península Ibérica. Comecei a me deparar com esse termo ainda em 2017, quando me juntei ao time de professores voluntários do Instituto Adus (adus.org.br). O que parecia teoricamente simples – afinal, é a minha língua materna – mostrou-se como um verdadeiro desafio na prática.
Como ensinar o uso adequado do português brasileiro para uma turma de 50 alunos, muitos deles não acostumados com o alfabeto romano, não para redigir um e-mail, mas para tentar um emprego e pesquisar sobre uma nova moradia, em um contexto integralmente novo e desafiador? É uma tarefa a ser pensada com carinho antes de entrar em sala de aula.
No começo do ano, comecei a lecionar para uma família de quatro venezuelanos – mãe, pai, filha adolescente e um bebê de menos de 2 anos. Eles deixaram uma casa, um negócio próprio, familiares e o contato cotidiano com a língua-mãe para trás e vieram para São Paulo, em busca de um recomeço, de um novo capítulo que lamentavelmente vira páginas para trás, a contragosto de, pelo menos, três desse núcleo familiar.
Enquanto o pai não consegue desfranzir a testa e a mãe tenta equilibrar a preocupação com bom humor, a filha adolescente, com temperamento mais introspectivo, obteve fluência quase imediata no novo idioma. O bebê, graciosamente, repete algumas palavras em português em sala de aula, mesmo não se dando muita conta do conteúdo e do contexto que os cerca.
Neste segundo semestre, a família felizmente voltou, matriculando-se no módulo II do curso de português do Adus. Fiquei feliz em permanecer próximo dos quatro. Quantos alunos terminam o curso e ficamos sem ter notícias? Em alguns casos, conseguimos manter contato e ter atualizações, mas não é o que acontece na grande maioria das vezes.
Nesses seis anos que estou voluntariando no Adus, não tive muitas experiências com crianças e adolescentes. Esse caso mencionado anteriormente é mais exceção do que regra. O que posso observar é que existe um contraponto complementar entre os mais jovens e os mais adultos: no primeiro caso, os estudantes são mais flexíveis e ágeis na absorção da língua; ao passo de que no segundo modelo, os educandos – em geral, isso é mais comum com os hispânicos – colaboram mais para o enriquecimento do nosso português brasileiro, ora com novas expressões idiomáticas, ora massageando a dureza losófona com a beleza do espanhol.
Não vejo a hora de ouvir, por aí, jovens brasileiros (ou não) dizendo “seguro” para expressar “com certeza” e “qué chévere” para comentar que algo é interessante. E que seja “pronto”.
Sebastião Rinaldi é jornalista e professor voluntário do Instituto Adus
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