Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Em meio à maior crise de deslocamento da história, migrantes e refugiados pertencentes a comunidade LGBTQIA+ enfrentam uma camada a mais de obstáculos diante desse cenário. Além da fome, da falta de moradia e da incerteza dos papéis de imigração, o grupo enfrenta o medo constante da discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, do abuso e da violência, mesmo em territórios que deveriam representar a esperança de uma nova realidade.
Enquanto conflitos seguem sem perspectivas de paz, a realidade é brutal. Reportagem do Correio Braziliense destaca que, de acordo com a ONU, a cada minuto, pelo menos 20 pessoas abandonam tudo o que conhecem para buscar segurança em terras desconhecidas. Sem a garantia de que o futuro que as aguarda é seguro ou confortável, a promessa de algo melhor é motivação suficiente para buscar por um refúgio.
Mas o ato de migrar, desafiador por si só, carrega camadas extras de complexidade quando atravessado por marcadores de gênero e sexualidade. Nesse contexto, pessoas LGBTQIA+ enfrentam vulnerabilidades específicas ao deixar seus países de origem.
Rica Prata, doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio e coordenadora de assistência da ONG LGBT+ Movimento, detalha: “No começo [da migração], a gente já vê o problema da migração solitária, da migração causada pela expulsão de casa, pela perda do trabalho, por conta da LGBTfobia. Essas pessoas já estão migrando sozinhas. Elas já não têm o apoio da família, não têm rede. Então, isso é uma questão que dificulta ainda mais a integração e o acesso dessas pessoas a terceiros países, a lugares seguros”.
Segundo o relatório “Refúgio em Números”, o Brasil registrou 58.628 pedidos de refúgio em 2023, feitos por pessoas de 150 diferentes países. No mesmo período, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) reconheceu 77.193 indivíduos como refugiados, e as principais nacionalidades entre os solicitantes foram venezuelana (50,3%), cubana (19,6%) e angolana (6,7%).
Com o aumento expressivo no número de reconhecimentos, especialistas apontam que uma parcela significativa desses refugiados pode ser composta por pessoas da comunidade LGBTIA+, que buscam proteção contra a violência e a discriminação em seus países de origem.
Embora o Brasil seja frequentemente retratado como um país acolhedor, essa imagem contrasta com a realidade vivida por muitas pessoas, principalmente a população LGBTQIA+. Prata explica que essa percepção é alimentada por elementos da cultura popular, como novelas, músicas e o próprio Carnaval, especialmente no Rio de Janeiro.
“As pessoas têm essa ideia de que o Brasil é um país permissivo, que é um país acolhedor, em que essas questões vão estar bem trabalhadas, bem resolvidas. Mas a gente sabe que não é bem assim”, Rica Prata.
Na prática, o Brasil segue liderando os alarmantes índices de violência contra a comunidade LGBTQIA+, sendo o país que mais mata pessoas trans e travestis, de acordo com dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Os dados sobre migrantes e refugiados no país ainda são escassos. Ao fazer um recorte de gênero e sexualidade, a situação é ainda mais grave. A pesquisadora Rica Prata chama atenção para o problema: “Se a gente não tem dados, a gente não tem política. Essas pessoas ‘não existem”.
Em relação à população LGBTQIA+, existe uma subnotificação dos dados, e o medo é o primeiro motivo pelo qual as informações são imprecisas. Uma pessoa que sofreu violência em seu país de origem, e foi obrigada a se deslocar por ser LGBT, dificilmente vai declarar a sua identidade de gênero ou sexualidade. Além disso, as pessoas pertencentes a essa comunidade também se deslocam motivadas por outras questões, mas não são reconhecidas quando esse tipo de levantamento acontece.
Direitos fundamentais, como o direito ao trabalho, à saúde e à habitação, não são uma realidade garantida para essa parcela dos imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil. A inserção no mercado de trabalho em um novo país é um dos desafios que essas pessoas enfrentam, além de também encontrar barreiras para ter acesso à saúde. “A gente sabe que o SUS é um exemplo internacional, mas a gente sabe também que na ponta do sistema do SUS há muito desconhecimento”, comenta Rica.
Embora existam clínicas de referência, nem todas estão aptas a atender imigrantes e pessoas LGBTs. O respeito ao nome social de pessoas trans e não-binárias é uma das questões que aparecem quando se discute o acesso à saúde. Ao ter sua identidade desrespeitada, essas pessoas acabam não voltando e abrem mão de cuidar da sua saúde a fim de evitar que sua existência seja violentada.
O direito à habitação é outro problema para essa parcela de imigrantes e refugiados. Os abrigos, que são direitos salvaguardados pela ideia da assistência social, muitas vezes, não estão preparados para receber a população LGBT, que enfrenta uma série de violências nesses espaços.
Então, um lugar que deveria oferecer abrigo e segurança, acaba oferecendo perigo para essa população, e muitas delas acabam em situação de rua: “A gente escuta muito no dia a dia da prática que elas preferem estar em situação de rua do que estar em um abrigo. As violações de direitos são inúmeras”, relata Prata.
São vários os agentes, governamentais e independentes, que atuam na remediação das dificuldades enfrentadas pelos refugiados que chegam no Brasil. Um deles é a organização comunitária LGBT+Movimento, que tem base na cidade do Rio de Janeiro e, desde 2017, cuida de pessoas migrantes e refugiadas LGBTQIA+. Seu objetivo é promover a integração e autonomia desses indivíduos no Brasil, com ações que se organizam em três eixos: Escuta e Acolhimento; Integração e Redes e Incidência. Hoje, a organização atende mais de 250 pessoas LGBT imigrantes no Rio.
Dados da ONG mostram que a maioria dos migrantes LGBTQIA+ atendidos é sul-americana, com destaque para venezuelanos (75,1%), argentinos (6,3%) e colombianos (3,3%). Em 2023, 82,9% estavam desempregados, 67,4% viviam em favelas e periferias e 13,1% estavam em situação de rua. Entre as pessoas trans, apenas 23,5% chegaram ao Brasil com o nome social nos documentos. A maioria do público atendido (82,6%) vive atualmente no Rio de Janeiro.
Juventude
Uma das especificidades do processo migratório de pessoas LGBTs diz respeito à migração de indivíduos mais jovens. A LGBT+ Movimento revelou em seu levantamento que quase metade (46,9%) dos migrantes atendidos têm entre 18 e 29 anos, e 35,8% apontam questões de gênero e sexualidade como motivo para migrar. Não se tem dados sobre crianças e adolescentes, mas Rica explica as complexidades reservadas à migração dessa parcela:
“Ser LGBT faz parte de uma autodeclaração. Então, às vezes as pessoas até são [LGBT], mas nunca vão se autodeclarar, nunca vão se assumir. Mas a gente recebe poucas pessoas que vêm com menos de 18 anos. A gente às vezes acolhe pessoas que estão ali, que são filhos, são sobrinhos, e que são crianças e adolescentes, mas a gente já trabalhou nesse universo de pessoas que têm menos de 18 anos”, Rica Prata.
A ONG trabalha em diálogo integrado com instituições como o Conselho Tutelar e a Defensoria Pública, que apresentam dispositivos legais para cuidar dos migrantes menores de idade no Brasil de forma geral: “Para nós, dentro da LGBT+ Movimento, o atendimento acontece da mesma forma. A gente olha para todos esses direitos, como a empregabilidade – se for o caso do Jovem Aprendiz –, mas também para saúde, habitação, alimentação, tudo isso”, explica a coordenadora de assistência.
Educação
O medo como reação a novos espaços e situações atravessa muitas vidas de pessoas LGBT, e para o imigrante ou refugiado jovem ele é, muitas vezes, vivenciado no ambiente escolar. A escola é um espaço que pode ser muito violento para essa parcela da população, e muitos preferem estar em outro lugar do que na escola, onde elas podem acabar vivendo violência, física, emocional, psíquica e às vezes até dos próprios professores.
É preciso desenvolver esforços para se garantir uma educação sexual e de identidade de gênero que pense na população jovem como uma parcela da comunidade LGBTQIA+ que também existe, e que esse olhar específico serve como um caminho viável para assegurar um processo de adaptação menos complexo para essas crianças e adolescentes.
Apesar dos avanços no Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso ao atendimento ainda apresenta desafios como barreiras linguísticas, falta de documentação e desconhecimento sobre os direitos de acesso à saúde pública.
Para orientar os serviços de saúde, o Ministério da Saúde lançou a Cartilha de Atenção à Saúde de Populações Migrantes, que reúne informações sobre direitos, protocolos de atendimento e práticas de acolhimento. Iniciativas como essa e a Política Nacional de Saúde Integral LGBT buscam promover uma abordagem mais inclusiva, mas especialistas alertam que a efetivação dessas diretrizes ainda depende de formação continuada, acolhimento humanizado e garantia do respeito à diversidade em todas as unidades de saúde.

Por Eduarda Monteiro Goulart, Felipe Mesquita e Luana Neves de Azevedo (Alunos da Escola de Comunicação da UFRJ), sob supervisão de Fernanda Paraguassu.
0 comentários