Nem sempre um livro surge de uma certeza. Algumas vezes, ele nasce de um enredo que intriga o escritor ao tocá-lo com as pontas de longos fios que não sabemos de onde vêm ou para onde vão.
Com “Malaika, força do Congo” foi assim. Uma vez apaixonada pela história, precisei mergulhar com afinco em um universo fascinante, que a muitos interessa manter escondido do mundo.
A ponta dos fios que nos envolveram foram os numerosos refugiados que chegam ao Brasil vindos da República Democrática do Congo, um país africano que convive há décadas com a violência e a exploração. Aqui e, em outras partes do mundo, eles sofriam e sofrem com o preconceito, a falta de apoio, compreensão e oportunidade.
Antes deles, havíamos conversado com muitos sírios e haitianos durante a fase de pesquisas dos nossos dois primeiros livros da Coleção Mundo Sem Fronteiras.
Sabemos que os migrantes representam o drama local de um problema global. Para contar suas histórias com respeito e verdade é preciso também dar visibilidade a partes do mundo que, na era da conexão, seguem ignoradas e esquecidas.
Nossa ficção se alimentou assim de mapas, pesquisas históricas e informações sobre as causas que levaram tantos ao exílio. Mas também dos aromas e sabores das ruas, do som das brincadeiras, dos espaços preenchidos pelo amor, a amizade, as dores e esperanças de crianças e jovens que perdem seu lugar no mundo.
Malaika bebeu também das fontes de pesquisa e dos relatos dos refugiados na emoção de nossos encontros. Mas, a cada passo, o desafio de percorrer os fios se tornava maior e mais complexo.
Foi ficando claro que não seria possível contar a história da personagem a partir da capital, Kinshasa. O caminho teria que começar no extremo leste do país, na obscura fronteira com Ruanda, quase no centro da África.
Ali, entre os Grandes Lagos Africanos e o vulcão Nyragongo, a cidade de Goma é invadida por um dos numerosos grupos armados da região do Kivu.
Malaika e sua mãe partem em uma viagem entre belezas e perigos, percorrendo florestas, montanhas e o poderoso rio Congo. No caminho até o mar, encontram povoados ameaçados, mulheres vítimas de violência, meninos-soldados e crianças que ainda trabalham nas de minas de ouro, diamantes e coltan.
Penetrar neste universo oculto, longe das câmeras e da imprensa, por rotas que o GPS não mostra, foi uma jornada longa, densa e inesquecível também pra mim.
O maior desafio era criar uma história que envolvesse os jovens leitores com este país vítima de um colonialismo brutal, em que até hoje as riquezas naturais despertam a cobiça de empresas e governos estrageiros, alimentando conflitos que nunca terminam.
Esta guerra contínua e escondida ecoa os métodos dos primeiros invasores belgas que cortavam os braços dos congoleses quando eles se negavam a trabalhar como escravos para enriquecer o rei.
Nosso mundo tecnológico atual não funcionaria sem o Congo. Cerca de 75% das reservas de coltan estão em território congolês. Boa parte da matéria-prima, essencial para a fabricação de aparelhos eletrônicos, sai de milhares de buracos insalubres do leste do país, muitas vezes sob a mira de fuzis Kalashnikov.
Enquanto o minério, rei da era digital, segue para as grandes empresas dos países ricos, muitas vezes via contrabando, falta energia para abastecer um simples celular no Congo. Até hoje, em vastas regiões, para preparar uma refeição, as mulheres precisam antes carregar nas costas por longas distâncias os galhos das árvores cortadas nos parques nacionais.
É uma das regiões do mundo mais perigosas do mundo para uma mulher viver. Onde seus filhos muitas vezes ainda precisam escolher entre a arma e o garimpo.
Foi a história delas que escolhemos contar.
Na longa jornada através do Congo, Malaika encontra também a saga de gerações de mulheres que sobreviveram ao ciclo de pobreza e violência sem perder a esperança. São as histórias que seguem com elas rumo ao refúgio, muitas vezes em porões dos navios, a única opção para recomeçar.
Estes fios delicados e fortes, tecidos pelas mãos e pela memória das meninas e mulheres congolesas, me guiaram na escrita de Malaika. Agradeço imensamente a elas, esperando que estas páginas sejam capazes de encantar também o leitor, estimulando a compreensão, a empatia e o acolhimento das vítimas de uma das maiores tragédias de nosso tempo.
Cassiana Pizaia é escritora e jornalista. Seus livros Layla, a menina síria e O Haiti de Jean, publicados pela Editora do Brasil, foram contemplados com o Prêmio Biblioteca Nacional, receberam o selo Altamente Recomendável da FNLIJ e foram selecionados para o Clube de Leitura ODS da ONU. Malaika, força do Congo e Terra Apagada, suas obras mais recentes, acabam de receber o selo Altamente Recomendável da FNLIJ 2023.
Fotos: Divulgação/Cassiana Pizaia
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