Foto: Guddu e Saroo (Divulgação)
Resenha
O filme Lion – Uma Jornada para Casa (2016), inspirado no livro autobiográfico “A Long Way Home” de Saroo Brierley, narra a história de um menino indiano que, após se separar de sua família, enfrenta grandes desafios antes de ser adotado por uma família australiana. Dirigido pelo australiano Garth Davis e protagonizado por Dev Patel no papel de Saroo já na fase adulta, o longa ainda conta com nomes de peso como a vencedora do Oscar, Nicole Kidman, que interpreta a mãe adotiva de Saroo.
O longa-metragem, que estreou no Brasil em fevereiro de 2017, recebeu seis indicações para o Oscar, incluindo o de melhor filme, melhor ator e atriz coadjuvantes e melhor roteiro. Além disso, o título também foi lembrado nas listas do Globo de Ouro e BAFTA – importantes premiações do cinema.
A película retrata várias paisagens da Índia, sendo que algumas tomadas aéreas atendem ao propósito de mostrar as belezas naturais do país. Ainda assim, as péssimas condições sociais conseguem se sobrepor a todo o resto, principalmente no que se refere ao tratamento dirigido às crianças.
Apesar de ser integrante dos BRICS por ser um dos países emergentes do mundo, a Índia ainda sofre com níveis altos de pobreza e analfabetismo. Vale destacar que antes de se perder na estação de trem, Saroo acompanhava a jornada de trabalho de seu irmão Guddu ao invés de ambos estarem na escola. As cenas dos garotos se arriscando sobre os trilhos são perturbadoras e levantam o questionamento sobre qual é o espaço destinado a eles.
Por isso, mesmo o início do filme retratando a infância de Saroo e do pôster apresentar o personagem ainda criança, o alvo do longa não é necessariamente o público infantil. Ao contrário, por abordar temáticas como desigualdade social, migração e adoção, o filme é mais indicado para o público adulto, especialmente para quem tem alguma ligação com esses tópicos.
Embora a migração e a adoção sejam os principais temas abordados no filme, chama bastante atenção a fragilidade do sistema indiano. Em 2023, a Índia ultrapassou a China e se tornou a nação mais populosa do mundo, com 1,4 bilhões de habitantes. Com isso, os desafios para gerir o país ficam acentuados, principalmente no que se refere às crianças. A experiência real de Saroo, que conseguiu viajar sozinho por longas distâncias sem ser interceptado por nenhuma autoridade, é um exemplo claro sobre as falhas do sistema indiano.
Depois de viver durante um tempo nas ruas e ser acolhido em um orfanato, outra questão emerge no filme. Enquanto aguardava para ser adotado por uma família australiana, Saroo passou por um processo de “ocidentalização” no qual teve que aprender normas de etiqueta, como comer de garfo e faca. Em se tratando de um país com costumes e tradições muito específicos, destaca-se a preocupação de enquadrar-se a um outro lugar.
Mais à frente no filme, a tecnologia desempenha um papel fundamental durante a busca de Saroo por sua família biológica, já que a ferramenta de localização do Google Earth é bastante explorada pelo personagem. E embora a empresa norte-americana que opera a plataforma não tenha participado da produção do filme, em alguns momentos o uso excessivo dessa ferramenta parece quase uma propaganda do serviço.
Mas isso não diminui a mensagem central do filme, que trata muito mais do que simplesmente uma jornada para casa. É também sobre um encontro consigo mesmo mediado pela resiliência, pelo amor e pelos múltiplos significados da palavra família.
Já a trama em si tem em Saroo o personagem principal interpretado por Sunny Pawar, que cresceu em uma pequena vila rural na Índia, onde sua família vivia em condições de extrema pobreza. Sua mãe trabalhava como carregadora de pedras, e ele, junto com seu irmão Guddu, interpretado por Abhishek Bharate, fazia o que podia para ajudar, buscando formas de conseguir alimento e dinheiro. Essa parte de sua infância ilustra as duras realidades sociais da Índia, especialmente nas áreas rurais, onde muitas crianças são forçadas a trabalhar desde cedo, lidando com a pobreza, a falta de acesso à educação e recursos essenciais.
Em uma noite, quando Saroo tinha apenas cinco anos, decide acompanhar seu irmão mais velho, Guddu, até uma estação de trem onde ele trabalhava. Exausto, acaba adormecendo em um banco da estação. Ao acordar, não encontra mais o irmão e, ao procurar por ele, acaba entrando em um trem vazio. O trem parte e Saroo se vê em uma viagem que o leva a Calcutá, a milhares de quilômetros de sua casa.
Incapaz de falar o idioma local bengali, Saroo fica perdido e vulnerável, sem conseguir se comunicar ou explicar de onde veio. Ele enfrenta diversos perigos, como o tráfico infantil, a fome e a incerteza das ruas, refletindo as duras condições enfrentadas por muitas crianças abandonadas ou perdidas na Índia.
Eventualmente, Saroo é levado para um orfanato. As condições nesse local são desafiadoras, e as crianças não recebem o cuidado e a atenção necessários. Embora esteja em um ambiente relativamente mais seguro do que as ruas, Saroo ainda se sente perdido e traumatizado. O orfanato tenta localizar sua família, mas sem informações concretas sobre sua vila de origem, não consegue avançar nos esforços. Saroo é então adotado por uma família australiana, os Brierley, e se muda para a Tasmânia.
As culturas dos dois países, porém, são distintas e o processo de adaptação de Saroo ao novo país começa ainda na Índia, em seu orfanato. Uma das responsáveis pela instituição ensina o menino e outras crianças que seriam adotadas a língua inglesa, para que consigam se comunicar minimamente com os novos pais. Além disso, as crianças também são ensinadas a comer com garfo, faca e colher, porque onde moram se usam apenas as mãos. A imposição destas etiquetas à mesa conversa com o conceito de ocidentalização de Huntington que afirma que as “sociedades não ocidentais carecem dos elementos da cultura ocidental e, ao incorporá-los, sinalizam caminho rumo ao desenvolvimento e ao progresso”, para que não sejam vistos como inferiores.
Na Austrália, Saroo se mostra tímido por não conseguir se comunicar plenamente com seus pais adotivos, porém curioso para conhecer o novo ambiente. Com o passar do tempo, a sua relação com a família fica mais fácil e leve. Em uma das cenas, Saroo está jogando críquete na praia com os pais e, ao vencer, seu pai diz “vitória da Austrália”, causando uma sensação de que ali já seria a nova casa, o novo país de Saroo.
Seu processo de adaptação ao novo país tem uma reviravolta quando Mantosh, outra criança indiana adotada pelos Brierley, chega na casa. Mantosh tem problemas neurológicos que podem ou não ter sido causados pelo tratamento no orfanato. Infelizmente, o filme não explora muito a infância dos dois meninos na Austrália.
Identidade e pertencimento
A longa e emocionante jornada de Saroo ganha mais um capítulo quando, já adulto, ele decide procurar pistas de seu passado para encontrar sua família biológica e, de certa forma, se reencontrar consigo mesmo. Movido por lembranças fragmentadas da sua infância, o personagem passa por conflitos internos a respeito de quem realmente é e de suas origens.
A partir desse desconforto, a questão da identificação se torna um tema relevante. Mesmo vivendo uma vida confortável e com uma família ao seu lado, existia um vazio dentro de Saroo por ter perdido suas referências mais íntimas.
Então, o personagem começa a ser muito crítico a respeito da sua realidade e dos seus privilégios. Essa inquietação foi o impulso para preencher seu vazio existencial na busca por pertencimento. Ao dar esse passo, foi preciso alguns questionamentos: “quem eu sou?”; “de onde eu vim?”; “quem é minha família?”. Lutando contra o sentimento de ser um estranho em sua própria vida, a sensação de deslocamento era algo constante.
Ciente de que vivia uma dupla identidade – duas famílias, duas culturas, dois países – isso gerava conflitos internos e dúvidas a respeito de quem ele realmente era e a quem pertencia sua lealdade. Mesmo amando sua família australiana, Saroo era movido por uma força incessante para encontrar sua família biológica, evidenciando a complexidade das relações humanas.
“O sentimento de pertencimento e de abraçar duas identidades ou culturas distintas também pode ser considerado como um exemplo da “identidade bifurcada”, conceito criado pelo antropólogo catalão Claudio Esteva Fabregat. Este tipo de identidade acontece quando os imigrantes de primeira geração, e uma parcela dos descendentes de segunda geração, absorvem parte da cultura do novo lar e a funde com suas raízes de origem.”
Quanto mais Saroo era movido pela necessidade de se reconectar com suas raízes, mais as pessoas ao seu redor eram afetadas também. Dessa forma, suas relações interpessoais foram colocadas à prova, já que a busca pela família indiana não se tratava apenas de um reencontro, mas de encontrar seu próprio lugar no mundo, o que também afetava as pessoas próximas a si.
Depois do choque inicial e de alguns conflitos, sua família adotiva passou a apoiar a iniciativa de Saroo, no que acabou sendo uma jornada de descobrimento para ambas as partes. Nesse processo, eles descobriram juntos que família é um conceito muito mais amplo e que não deve ser reduzido apenas a laços sanguíneos.
Sendo assim, de alguma forma, a relação entre Saroo e sua família australiana conseguiu sair mais forte dessa situação, ressaltando o amor e a lealdade existente entre eles em detrimento das dúvidas ou inseguranças.
Nesse sentido, ele usa a ferramenta Google Earth para explorar o território indiano em busca de alguma pista, de alguma recordação ou de algum lugar que lhe fosse familiar. Em dado momento, depois de muitas tentativas frustradas, Saroo se encontra tão submerso que chega a ter uma crise, mas não foi o suficiente para frear o seu ímpeto.
Por isso, sua resiliência foi tão importante quanto a tecnologia nessa busca, já que o fato de seguir sempre acreditando reflete um processo emocional interno muito forte. Com o tempo, Saroo foi aperfeiçoando seus métodos de busca, aos poucos foi recuperando memórias antigas e literalmente dando zoom ao se aproximar cada vez mais das suas origens.
Contém spoiler
O ápice do filme é quando a busca finalmente chega ao fim e Saroo encontra seu vilarejo e viaja para reencontrar sua família. Esse momento simboliza muito mais do que a reunião de corpos separados por tanto tempo, mas da própria união de Saroo consigo mesmo. Mesmo depois de tanto tempo separados, Saroo é recebido com profunda emoção por sua mãe e por todos do vilarejo que festejaram muito a sua volta. Em essência, o filme captura com bastante sensibilidade a complexidade das relações humanas e da importância do pertencimento.
Aspectos da imigração indiana
A comunidade de imigrantes indianos no mundo é vasta e diversa, com presença significativa em países como os Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, além de países europeus como Portugal e Itália. Nos EUA, os imigrantes indianos são conhecidos por sua alta taxa de educação, a Lei de Imigração e Nacionalidade de 1965 abriu portas para a imigração qualificada.
No Reino Unido, os indianos são o maior grupo étnico não-branco, com muitos tendo migrado durante o período pós-colonial. Muitos chegaram na década de 1950 e 1960, quando o Reino Unido incentivou trabalhadores imigrantes a preencher lacunas no mercado de trabalho após a Segunda Guerra Mundial.
Em Portugal, a comunidade indiana está em crescimento, mas enfrenta desafios. Recentes alterações nas leis de imigração, como o fim da “manifestação de interesse” – um mecanismo que permitia que imigrantes se regularizassem após já estarem em Portugal, desde que tivessem uma oferta de trabalho -, complicaram o processo de regularização de muitos imigrantes indianos, que se encontram vulneráveis e sem soluções claras para permanecer legalmente no país. Com a nova legislação, eles agora precisam iniciar todo o processo de obtenção de vistos a partir dos seus países de origem, o que é um desafio, especialmente para aqueles que vêm de regiões sem representação diplomática portuguesa.
Segundo o jornal Valor Econômico, em 2022, a Índia foi o principal país de origem de migrantes para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Espanha, Canadá, Austrália e outros. Em 2023, a Índia contabilizou aproximadamente 18 milhões de migrantes internacionais, representando cerca de 1,3% de sua população.
Na Austrália, de acordo com o governo australiano, o país vem recebendo um número recorde de imigrantes. Desde 2022, foram cerca de 510.000 novas aplicações de vistos para estrangeiros. Com a justificativa de conter a inflação e a crise imobiliária, o governo aplica um novo plano de imigração que visa cortar o volume de imigrantes em 25% nos próximos anos. Brasileiros formam o maior grupo de imigrantes da América Latina para a Austrália. Os mais recentes dados do Censo 2021 apontam que existem cerca de 46,7 mil brasileiros morando por lá – desses, 20 mil são estudantes.
Por Gabriel Nascimento, Letícia Moser e Suelen Oliveira, estudantes da disciplina de Laboratório de Cidadania, do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ministrada pela Profa Fernanda Paraguassu.
Sob supervisão de Fernanda Paraguassu.
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