Apenas em 2023, o Brasil recebeu 17.440 pedidos de refúgio de crianças e adolescentes, representando quase 30% das solicitações registradas pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare). E dos 77.065 processos de solicitação de refúgio aprovados no ano retrasado, 44% eram de menores de 18 anos.
Os dados são do relatório Refúgio em Números de 2024, elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Porém, não se sabe ao certo quantos destes menores de idades imigrantes estavam desacompanhados ou separados de seus responsáveis. O MJSP não faz essa distinção.
Nesse contexto, a falta de dados invisibiliza os menores de idade que estão imigrando nessa situação e compromete a adoção de estratégias para lidar com a questão. É o que defende a assessora jurídica do Ministério Público Federal (MPF) Taís Vella Cruz, que é mestra em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com enfoque em direito imigratório.

A pesquisadora enfatiza que atualmente “não existe um procedimento de acolhimento específico para crianças e adolescentes em situação de refúgio ou de imigração”, pois a própria legislação brasileira e o déficit de diretrizes sobre a situação afetam o processo de refúgio para menores de idade.
Entenda abaixo sobre o pedido de refúgio e as questões legais que o envolvem:
MIRE: Qual é a diferença entre uma criança desacompanhada e uma criança separada?
TAÍS: Antes de tratar do conceito, propriamente dito, eu acho que é importante a gente considerar porque houve a necessidade de cunhar esses termos. Quando a gente trata ali de migração, de uma maneira geral, existem inúmeros fatores que levam as pessoas a migrar, mas, de uma maneira geral, o que se percebe é um contexto de invisibilidade ao tratar da situação da criança ou do adolescente desacompanhado ou separado. Isso porque ao longo de toda a história, por diversas razões históricas e culturais, a criança é vista como um apêndice dos adultos. Ela não é vista como um sujeito autônomo, capaz de expressar as suas intenções e as suas vontades.
Porém, como cada vez mais as crianças e os adolescentes foram percebidos nesse contexto de imigração e, muitas vezes as regras existentes não se aplicavam ali de uma maneira adequada, surge então a necessidade de definir um conceito para tratar dessas populações na intenção de conferir uma visibilidade a esses públicos.
Por conta disso, o Comitê dos Direitos da Criança, que é um órgão de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, elaborou, lá no ano de 2005, o Comentário Geral nº 6, que orienta sobre o tratamento das crianças desacompanhadas ou separadas fora do seu país de origem. Esse documento traz um conceito inicial de quem são as crianças desacompanhadas ou separadas.
As crianças desacompanhadas podem ser compreendidas como aquelas que foram separadas de ambos os pais e outros parentes, então não contam com a presença de nenhum adulto responsável pelos seus cuidados, seja por determinação legal ou por uma relação de costume ou socioafetiva. São as crianças e adolescentes que se encontram, de fato, sozinhos. Já as crianças separadas são aquelas que se encontram separadas de ambos os genitores ou seus cuidadores legais, mas não necessariamente de outros parentes ou de outros adultos, como, por exemplo, tios, tias, padrinhos e madrinhas.
MIRE: Quando menores de idade imigrantes chegam no Brasil para começar o processo de refúgio, eles precisam de um adulto representando-os. Como funciona legalmente a representatividade ali nesse pedido?
TAÍS: Para a gente compreender a necessidade de um adulto na solicitação de refúgio, acho que é interessante considerar também a ideia de capacidade ou incapacidade. O Código Civil, de 2002, é a legislação que regula as relações entre as pessoas, as relações principalmente privadas na sociedade. Essa legislação é muito focada em valores relacionados à propriedade e ao patrimônio privado. Então, a ideia central é a tutela do patrimônio das pessoas de uma maneira geral.
Mas essa questão patrimonialista acaba influenciando no modo de compreender as pessoas. Então, no regime das incapacidades, há um grupo que é compreendido como capaz à sociedade e outro formado pelas pessoas incapazes de exercer os direitos e as faculdades humanas por si próprias.
O Código Civil define nos artigos iniciais quem são as pessoas absolutamente incapazes. E aí ele se utiliza de um fator de idade. Então, os menores de 16 anos não possuem, enquanto pessoa, o discernimento para distinguir o que pode ou não pode ser realizado na ordem privada. Por isso, as pessoas absolutamente incapazes devem ser representadas. No artigo 4º, ele define os relativamente incapazes, os maiores de 16 e menores de 18 anos, que não precisam ser representados, mas devem ser assistidos.
E aí está a grande questão: de uma maneira geral, se pensa nessa noção de capacidade, a partir do viés patrimonial e não para resolver, assim, de fato, questões existenciais, como pode ser compreendida a solicitação de refúgio.
MIRE: E como essa visão jurídica, que pede a presença de um adulto, pode afetar a entrada de crianças e adolescentes desacompanhados ou sozinhos?
TAÍS: Isso era uma questão que sempre surgia no momento que eram identificadas crianças ou adolescentes desacompanhados ou separados porque essa compreensão de incapacidade jurídica, para exercer os atos por si próprios, acabava impedindo a formalização/o início do processo de solicitação de refúgio porque as crianças eram vistas ali compreendidas como titulares de direitos, mas elas não tinham a condição plena de exercê-los. Com isso, as primeiras autoridades migratórias que tinham contato ali com a criança ou com adolescente, entendiam que não era possível efetivar essa solicitação de refúgio justamente porque o menor de idade não tinha capacidade jurídica para para efetuar esse pedido.
Era uma situação mesmo de estranhamento. Imagine que uma criança aqui no Brasil não poderia tomar uma decisão a respeito da sua vida totalmente sozinha. Se não existia alguém junto dessa criança ou junto desse adolescente para auxiliar na realização desse pedido, a gente impedia que esse processo tivesse início.
MIRE: Em 2017, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e a Defensoria Pública da União criaram a Resolução Conjunta nº1, de 9 de agosto de 2017, que trata dos primeiros procedimentos em relação a criança e adolescente desacompanhado ou separado. Qual a importância desse instrumento para a imigração dos menores de 18 anos?
TAÍS: Podemos dizer que foi o primeiro ato normativo brasileiro a tratar de maneira específica da questão da criança solicitante de refúgio desacompanhada ou separada. Então ela teve um papel muito importante naquele período justamente porque a ideia principal desse documento era garantir a rápida identificação da criança e do adolescente e, a partir disso, possibilitar a sua inclusão no sistema de direitos brasileiro porque o Estatuto da Criança e do Adolescente trabalha com essa ideia de igualdade entre crianças e adolescentes.
Então, a partir do momento que uma criança está no território brasileiro, independente da sua origem, tem que ser assegurado a ela todos os direitos e garantias inerentes a toda e qualquer criança do Brasil.
MIRE: Isso então supera a questão da capacidade jurídica?
TAÍS: Num primeiro momento sim, porque ela previa a possibilidade de nomear o defensor público da União como uma espécie de curador especial para fins migratórios, feito justamente com a intenção de evitar aquele problema da representação. Então, se a criança está sozinha, a gente nomeia o defensor, que é um servidor público e tem essas prerrogativas e naquele momento será o responsável legal por aquela criança. Mas é uma nomeação provisória e bastante limitada porque serve apenas para aquele ato. Inclusive, a própria Defensoria Pública da União chama a atenção para a utilização indevida dessa resolução. A defensoria recebe e é incumbida apenas para aquele ato. E isso não exime as outras autoridades de acionar a rede de proteção.
Apesar disso, a resolução foi muito importante e teve uma aplicabilidade de destaque no contexto das migrações por via terrestre como a dos venezuelanos, porque existia uma estrutura de recepção dessas pessoas e que tornava mais fácil localizar um agente da defensoria.
Mas pode ser que em outros contextos, em outras localidades, a Defensoria Pública da União não esteja presente ali de imediato, então, por isso que não se deve desconsiderar a importância dos outros agentes da rede de proteção. Então, a partir do momento em que é identificada uma criança em situação de risco, deve ser acionado o Conselho Tutelar, deve ser acionada a Justiça da Juventude. Após isso, tanto o Ministério Público quanto o Poder Judiciário e os outros agentes do sistema de proteção vão poder atuar em prol daquela criança que foi identificada.
MIRE: Após os órgãos serem acionados, para onde essa criança segue? Ao ser direcionada para um abrigo, ela pode ser adotada?
TAÍS: Não existe um procedimento de acolhimento específico para crianças e adolescentes em situação de refúgio ou de imigração. Então, a partir do momento que a criança é identificada sem a presença de nenhum responsável e que existe uma situação de risco, essa criança vai ser encaminhada para um acolhimento institucional, para os abrigos e ela estará lá sob tutela da rede de atendimento até a maioridade.
Você sabia?
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 33 mil crianças e adolescentes estão em abrigos no Brasil.
TAÍS: Mas, isso é uma medida de proteção que é excepcional. O ECA tem como princípio fundamental o direito à convivência familiar. Então, essa medida tem que ser aplicada de maneira temporária.
Mas, muitas coisas podem acontecer durante esse procedimento, então pode ser que num primeiro momento a criança seja identificada como desacompanhada, porém, enquanto ocorre a solicitação de refúgio, sejam identificados parentes próximos, com quem ela possa estabelecer um vínculo de convivência.
A todo tempo é realizada uma busca ativa para localização de familiares ou pessoas de referência com quem ela possa voltar a ter um convívio familiar ou comunitário. Então, a colocação da criança do adolescente para adoção é uma medida que deve ser utilizada em último caso.
MIRE: A senhora trouxe algumas questões que são desafiadoras e, por isso, gostaríamos de saber o que ainda falta avançar nesse contexto de acolhimento de crianças separadas ou desacompanhadas.
TAÍS: De fato, é uma questão muito complexa não só pelas particularidades relacionadas à migração, mas também porque demanda um reforço para o bom funcionamento das políticas públicas que já existem no Brasil relacionadas ao acolhimento de crianças e adolescentes de maneira geral. Me parece que ainda é muito necessário o fortalecimento dessa estrutura interdisciplinar e multiprofissional, que deve existir.
A gente precisa de diversos agentes especializados como psicólogos, assistentes sociais, juízes, promotores, defensores públicos e advogados que compreendam as crianças e adolescentes como sujeitos de direito. O fortalecimento dessa equipe multiprofissional aliada a essa percepção das particularidades da criança e adolescente pode ser um dos caminhos para auxiliar no melhor desenvolvimento dessas questões.
Felizmente, não é tão comum localizar crianças e adolescentes desacompanhados ou separados, mas nós sabemos que eles existem e que estão inseridos no fluxo migratório que se verifica cada vez mais é intensificado no mundo. Então, acho que é importante ter a consciência de que não é uma questão tão corriqueira, mas que ela pode, sim, existir. E quando ela existe, o ideal é que a gente aja com uma estrutura em funcionamento.
E um ponto básico nessa situação toda é justamente a estruturação de dados e informações sobre essas crianças, porque a gente só vai conseguir pensar em estratégias e em ferramentas específicas, a partir do momento em que a gente identificar onde estão, quem são e quais são as dificuldades nesse procedimento. E, a partir disso, pensar em estratégias para construir ou para efetivar essa rede multiprofissional e interdisciplinar. Tem bastante coisa a ser feita.
Por João Guilherme Tuasco (Aluno da Escola de Comunicação da UFRJ, sob supervisão de Fernanda Paraguassu)
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