De modo geral, o tema da infância migrante e do tratamento dado a crianças e adolescentes em cada país é concentrado, por motivos mais que justificáveis, em questões de direito ao desenvolvimento, educação, bem-estar e integração local no Brasil. Essa percepção é por si só uma vitória dos que defendem direitos das crianças, pelo que se convencionou chamar de children first: ver as crianças primeiramente como crianças titulares de direitos, e só depois como migrantes sujeitas a regimes diferenciados.
No entanto, e com o perdão de eventuais excessos de linguagem jurídica, gostaria de aproveitar esse espaço para ressaltar um ponto negligenciado. Refiro-me ao tratamento dado a crianças migrantes em sua chegada ao território brasileiro, seja por via terrestre, portos ou aeroportos. Nesses espaços de indeterminação, alta mobilidade e pouca visibilidade, os riscos de violação a direitos por parte do Estado e de outros atores são bastante aumentados.
Em qualquer lugar ou continente, crianças e adolescentes em zonas de fronteira estão mais expostos a situações de tráfico de pessoas, ou de violências decorrentes de sua condição migratória. Isso passa pelo uso de rotas perigosas de migração irregular, muitas vezes longas se consideradas as diversas etapas desde a cidade de saída. Além disso, há o caso de crianças indocumentadas, que podem ter a dificuldade de provar sua condição de criança, o que exige verificações nem sempre adequadas pelos controles migratórios dos países. Crianças podem ser utilizadas como meios de facilitação da migração de adultos. Por fim, deve-se lembrar o caso de tantas crianças que migram sozinhas, ou em grupos, e sequer são tidas como aptas a manifestar sua vontade de solicitar refúgio ou outras formas de proteção.
É interessante perceber que o tema da migração internacional de crianças e adolescentes desacompanhadas dos pais, com ou sem outros familiares, teve atenção tanto do sistema global de proteção aos direitos humanos, conhecido como sistema ONU, como do nosso sistema interamericano. Ambos produziram documentos esclarecedores sobre direitos das crianças separadas ou desacompanhadas em situação de mobilidade internacional. A menção é obrigatória, mesmo para não-juristas: trata-se do Comentário Geral nº 06 do Comitê dos Direitos da Criança (2005)[1], que promove a interpretação da convenção internacional de mesmo nome, e da Opinião Consultiva nº 21 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (2014)[2], que responde a questionamentos feitos pelos países membros do Mercosul sobre os deveres dos Estados frente a crianças migrantes.
Não pretendo aqui explorar os dois documentos, mas sua existência foi importante para que, pressionado a apresentar progressos normativos e administrativos perante órgãos multilaterais, o Brasil inovasse em sua legislação num momento em que não havia a nova Lei de Migração e os casos de crianças desacompanhadas em suas fronteiras não eram tão numerosos. Em 2017, quatro órgãos promoveram a adoção de um protocolo comum de ações e procedimentos para crianças separadas e desacompanhadas em zonas de fronteiras. O primeiro deles foi o CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Outros dois são da governança migratória: o CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados e o CNIG – Conselho Nacional de Imigração. Como quarta subscritora, figura a DPU – Defensoria Pública da União como instituição encarregada da prestação de assistência jurídica e monitoramento de direitos humanos. Dessa vontade comum, surge a Resolução Conjunta CONANDA/CONARE/CNIg/DPU[3].
E o que, afinal, previu a Resolução Conjunta? Por que ela é importante, apesar de suas limitações e defeitos, para a proteção de crianças migrantes na fronteira?
O ponto central do texto é a previsão de uma lista de medidas a adotar quando a criança migrante é reconhecida como desacompanhada (sem nenhum adulto acompanhante) ou separada (acompanhada de outros familiares que não o pai ou a mãe) na fronteira. Para além do simples controle migratório, a Polícia Federal é obrigada a promover a identificação e encaminhar a criança para que sua existência seja conhecida pelos órgãos do Sistema de Garantia de Direitos previsto no Estatuto da Criança e Adolescente (Lei nº 8.069/90), que são a Vara de Infância e Juventude responsável, o Ministério Público e o Conselho Tutelar da localidade. Além disso, a Defensoria Pública da União deve ser comunicada.
Enquanto os primeiros têm o papel de promover acolhimento emergencial e medidas de proteção amplas, a Defensoria exerce a função de representante legal. Não é guardiã da criança ou adolescente, mas faz em seu nome os pedidos de regularização migratória ou solicitação de refúgio e está encarregada de uma entrevista de análise do caso, em que pode até mesmo sugerir que seja devolvida ao país de origem se isso for mais benéfico para a criança.
Com a Resolução, o Brasil põe em prática seu compromisso de escutar e proteger crianças migrantes na fronteira quando desacompanhadas, impedindo o rechaço e o impedimento de seu ingresso. Parece pouco, mas é uma vitória, especialmente quando consideramos o tratamento policialesco e repressivo dado à migração de crianças e adolescentes por países do Norte global.
O impacto numérico é, também, assombroso. Para uma norma feita para casos excepcionais ou pontuais, que não excederiam uma ou duas centenas num ano, a intensa migração de pessoas venezuelanas pela fronteira norte no Estado de Roraima foi um desafio, e deu uma visibilidade sem precedentes à questão.
A Defensoria Pública da União implantou em 2018 uma missão de campo dentro da chamada Operação Acolhida, a força-tarefa humanitária do governo brasileiro na cidade de Pacaraima/RR[4]. Mês após mês, seu papel de representação legal e análise individual de cada caso em entrevistas reservadas foi crescendo, e hoje há o registro de mais de 16 mil atendimentos realizados. Se considerarmos o quase total fechamento da fronteira entre 2020 e 2021, os dados são ainda mais impressionantes. Ou seja, o Brasil criou uma norma para o que viu – a necessidade de um protocolo prévio para atender crianças migrantes desacompanhadas – e acertou no que não viu. A Resolução Conjunta virou uma peça essencial para a proteção em larga escala de milhares de crianças venezuelanas na fronteira, ao ponto de ser a DPU um órgão essencial na Operação Acolhida para que atinja seus objetivos.
Há críticas e problemas a levantar. A Resolução Conjunta foi uma norma de certo modo emergencial, ou, em linguagem menos formal, uma “gambiarra normativa”. Seria necessário haver uma melhor reflexão sobre sua aplicação prática. A proliferação dos “formulários da DPU” diminuiu, ao menos em minha percepção, a presença do sistema de justiça no fluxo de proteção, gerando uma espécie de regime próprio de exceção para crianças migrantes. Por fim, deve-se questionar se o superior interesse da criança vem sendo considerado na prática, ou se o protocolo tem se prestado mais à função operacional de agilizar fluxos que ao proposto em sua criação. Pior ainda é imaginar que, de modo unilateral, o CONANDA editou uma nova resolução substitutiva em 2023, que sequer foi aprovada pela DPU ou demais órgãos[5].
Cada ponto pode ser desdobrado em novos artigos e análises. Para o momento, fica a tentativa de explicar um pouco sobre uma norma tão falada e comentada, mas nem sempre lida. Espero que, assim, a proteção jurídica à infância migrante nas fronteiras seja, cada vez mais, um tema de nossas agendas de pesquisa e debate.
[1] https://www2.ohchr.org/english/bodies/crc/docs/gc6.pdf
[2] https://www.ippdh.mercosur.int/wp-content/uploads/2015/12/OC-21-Completa.pdf
[3] https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/19245715/do1-2017-08-18-resolucao-conjunta-n-1-de-9-de-agosto-de-2017-19245542
[4] https://direitoshumanos.dpu.def.br/missao-pacaraima/
[5] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-232-de-28-de-dezembro-de-2022-454882847
João Chaves é defensor público federal. Coordenador da Área de Migrações e Refúgio da DPU/SP. Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Pesquisador do Observatório das Migrações em São Paulo. @prof.joaochaves e-mail: joao.chaves@dpu.def.br
Foto: Arquivo MiRe
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