Ndeye Fatou Ndiaye, no Parque Guinle (RJ) | Foto: Arquivo Pessoal
São muitos os contextos que levam pessoas a entrar em situação de refúgio. Entre a guerra, instabilidade política, crise econômica e climática, perseguição religiosa, étnica e racial, famílias veem na mudança de país uma oportunidade de recomeçar e viver dignamente. Nessa nova realidade, não só adultos precisam se adaptar, mas também crianças e adolescentes ganham uma nova rotina.
“‘Pedem pra eu falar em português, mas ninguém quer ouvir a minha língua’, ou a criança fala: ‘A minha família não coube aqui’ e aí quando conversamos com ela, descobrimos que por não saber o português, os seus familiares não conseguem emprego […] a gente vê a desigualdade e o preconceito nessas questões que estão ali, no dia a dia deles”, explica Yasmin Postiga, mestranda em Educação na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Ao estudar, os alunos são atravessados por barreiras culturais, que podem desencadear por parte de outros alunos, preconceitos, bullying ou cyberbullying.
O caso Ndeye Fatou
Em 2020, a estudante Ndeye Fatou Ndiaye (foto em destaque), filha do migrante e professor universitário senegalês Mamour Sop Ndiaye, sofreu ataques racistas em um grupo de WhatsApp. Ela tinha 15 anos na época e as ofensas partiram de colegas de turma da escola particular em que estudava, localizada em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro. O caso ganhou repercussão e dois dos alunos foram indiciados por fato análogo aos crimes de racismo, injúria racial e o terceiro por fato análogo ao crime de injúria racial.
Fatou se tornou ativista e atualmente estuda Economia, Matemática e Políticas Públicas na Gettysburg College, localizada na Pensilvânia, EUA. “Eu era só uma menina, mas de repente surgiram pessoas me acusando de negligenciar [um determinado] tema ou pessoa. Eu tinha aulas para assistir”, ela ri, em entrevista à BBC, lembrando o episódio que aconteceu quando tinha apenas 15 anos.
“Um grande problema da internet para mim é que as pessoas não conseguem diferenciar comentários negativos do que é, na verdade, um crime de ódio. As pessoas se sentem livres para dizer o que querem sem perceber que muitos dos seus pontos são racistas, xenófobos ou caluniosos”, disse Fatou em entrevista à BBC.
Cenário do Cyberbullying
Segundo a Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem, apresentada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em que os dados foram divulgados pelo Inep, em 2019, o ambiente escolar brasileiro é duas vezes mais suscetível ao bullying do que a média geral das instituições de ensino em 48 países. Já o cyberbullying, que só foi considerado um crime em 2024, apareceu em um levantamento realizado pela Central Nacional de Denúncias da Safernet. A plataforma identificou que aproximadamente “26 mil casos de crime de ódio no ambiente virtual sobre xenofobia foram denunciados entre 2017 e 2022. Entre os anos de 2021 e 2022, as denúncias cresceram 874%, superando as acusações de intolerância religiosa, racismo, LGBTfobia, misoginia e neonazismo registradas no mesmo período”. Sendo ainda mais alarmante para os anos de 2022 e 2023, em que houve um crescimento de 252,25% nas denúncias.

Foto: Freepik
De acordo com uma pesquisa do Instituto Ipsos, 55% dos brasileiros consideram as redes sociais um ambiente inseguro para adolescentes. O estudo mostra que a percepção de insegurança é ainda maior entre os mais jovens: 32% consideram as redes sociais muito inseguras. A pesquisa foi realizada no início de abril com cerca de 2.000 pessoas em 131 municípios. Tal constatação vai de encontro com o que o Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH) identificou: a internet é uma ferramenta que incentiva os crimes de ódio.
Na pesquisa do instituto, 2 em cada 10 entrevistados relatam ter sofrido algum tipo de situação de cyberbullying. Os jovens de 16 a 24 anos são os que mais relatam ter sofrido cyberbullying (37%), 56% deles classificam as redes sociais como inseguras, e 28% como muito inseguras. São também os jovens (87%) que mais declaram ter conhecimento de casos de bullying online.
Já segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 2019 (PeNSE), estudo elaborado pelo IBGE que contemplou amostra de 159.245 estudantes de 13 a 17 anos do ensino fundamental e médio de escolas públicas e privadas, a prevalência de 13,2% de jovens vítimas de cyberbullying.
O novo e o papel das escolas
Entre os fatores presentes na imigração de crianças e adolescentes está o impacto emocional do deslocamento forçado. A psicóloga Gabriela Azevedo de Aguiar, doutora em psicossociologia de comunidades e ecologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , trabalha com refugiados e imigrantes e relata que o trauma da migração pode afetar profundamente a saúde mental das crianças.
Em entrevista à Revista Gama, Gabriela defende que, “em geral, ninguém pergunta como as crianças estão se sentindo e quais são seus sonhos para além da sobrevivência. As crianças têm voz. Precisamos criar espaços sensíveis para que a gente consiga escutá-las”.
Em junho de 2023, o relatório Refúgio em Números – 9ª edição, lançado pelo Conare/OBMigra/MJSP reconheceu 77.193 pessoas como refugiadas. Os homens corresponderam a 51,7% desse total e as mulheres, a 47,6%. Além disso, 44,3% das pessoas reconhecidas como refugiadas eram crianças, adolescentes e jovens com até 18 anos.

Gerado a partir de dados do CONARE
Segundo o Ministério da Educação, são 140 mil os estudantes inscritos na escola pública, de mais de 187 nacionalidades.
“A escola tem que se empenhar em dar oportunidade de aprendizado a essas crianças, com professores bem preparados, com apoio da gestão e currículos adaptados e que promovam a diversidade”, é o que defende Rebeca Otero, coordenadora de educação da Unesco Brasil, em entrevista a Fundação Telefônica VIVO. “Dar condições para que o imigrante aprenda a língua local e promover ações que combatam a discriminação e aproxime culturas é essencial”.
Para as Nações Unidas, o bullying apresenta riscos para menores em situações de vulnerabilidade, como, por exemplo, crianças com deficiência, crianças afetadas pela migração, requerentes de asilo ou refugiadas. Pensando nisso, a Convenção sobre os Direitos da Criança fornece uma série de orientações essenciais para lidar com essa situação. Um deles, a especialista em direitos da criança do Japão, Mikiko Otani, afirma que seja o ideal: “o investimento na prevenção é fundamental, desde a primeira infância”.
A inclusão como solução
E é pensando na prevenção, logo nos primeiros anos da educação, que iniciativas como o Projeto de Acolhimento a Alunos Refugiados e Estrangeiros, da Escola Municipal Almeida Garrett, passaram a existir.
Desde 2022, o programa acontece em parceria com a UERJ. A necessidade de criá-lo surgiu com a incidência das crianças em situação de refúgio que eram matriculadas na instituição. Com o decorrer do tempo, as mães estrangeiras, acabavam sabendo através de outros responsáveis, que a escola recebia e acolhia os alunos e, com isso, manifestavam o interesse em inseri-los na comunidade acadêmica.
A iniciativa, que atende alunos do ensino fundamental, foi ganhando forma e os pedagogos desenvolveram um método em que uniram os estudantes de acordo com a faixa etária e o nível de aprendizagem, atendendo-os semanalmente e alocando-os nas turmas.
“As crianças vão pra escola através da ‘coordenadoria’, passam por uma série de trâmites legais e depois fazemos uma diagnose com a criança, onde há muito diálogo. Nós identificamos como foi a vinda da criança e qual a melhor turma de acordo com a idade dela […] A parceria com a UERJ é muito importante porque eles têm uma formação voltada a esse grupo e com isso, a gente consegue ver as crianças sorrindo, coisa que é muito difícil da gente ver, porque eles não sorriem mais, é muita carga, passaram por muita coisa ainda novinhos”, disse Debora Bessa, coordenadora da escola.
Após essa “triagem”, a proposta de inclusão é trazida em meio aos estudos de literatura.
“Todo sujeito porta um estigma, seja ele de maior ou menor importância moral na sociedade, ou seja, como aquela criança vai ser vista depende da quantidade de estigmas que ela carrega, muitas vezes. O que a gente trabalha na literatura? A literatura exercita a nossa capacidade de abstração, mas também trabalha a capacidade da gente se conectar com os personagens. Então é conectando com um personagem incomum que a gente trabalha a inclusão com as crianças”, explicou Yasmin Postiga, mestranda em educação e professora no projeto.

Foto: Carol Jojima
Yasmin, orientada por Janaína Moreira, faz parte do grupo “Estudo sobre o cenário de alfabetização de crianças imigrantes no Rio de Janeiro”. Ela atua na escola desde o início do projeto e faz ressalvas sobre o “pertencer” e também sobre a demanda imposta aos docentes.
“No momento em que a criança se sente parte do cotidiano escolar, ela se sente livre pra ser ela mesma, manifestar a sua identidade cultural e social, esse ambiente muda. A gente fala que a sala de leitura se torna um lar pra essas crianças também […] Não tem como a gente culpar o professor dentro de uma sala de aula numa escola pública, porque dentro de uma sala de aula, num panorama geral, numa sala de aula que deveria ter no máximo 25, 30 alunos, tem 40, desses 40, uns 5 são incluídos, mais 2 ou 3 venezuelanos, ou de outras etnias como a gente também tem aqui”, disse.
O levantamento de dados trazido nesta matéria faz um alerta a uma violência (e crime) que, em linhas gerais, acontece a partir da percepção e negação das diferenças culturais. O que, dificilmente, será mudado do dia para noite, mas com as ferramentas da educação, pode transformar a vida desses menores para melhor.
Instituições que têm a cultura de acolhimento conseguem transmitir esses valores aos seus alunos. Ao ser perguntada sobre a relação das demais crianças com aquelas que estão em situação de refúgio, Debora respondeu: “eles são bem receptivos, apesar de muito agitados. Eles têm cuidado, ‘tia, ele não está entendendo o que você tá falando’, sempre tem uma ponte. A gente fala com os alunos brasileiros ‘imagina você sair do seu país, da sua referência, sem uma comida que você gosta, uma música’”, explicou a pedagoga, que se esforça para criar uma conexão entre todos os discentes.
Por Dayane Marques Santos, Ana Carolina Chaves Jojima e Luana Borges (Alunas da Escola de Comunicação da UFRJ, sob supervisão de Fernanda Paraguassu)
0 comentários