Direitos de indivíduos não passam de retórica vazia, sem a disposição dos Estados de garanti-los. E mais, quando a situação é de exceção, corre-se o risco de se perder o direito a ter direitos. E o grau de exposição à vulnerabilidade aumenta.
Quem lê Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt, identifica a fragilidade da garantia de direitos. No contexto do pós-guerra, Arendt já dizia que direitos universais não passavam de papo furado. Ela referia-se ao que acontecia com judeus, refugiados e minorias étnicas na época. Para Arendt, a cidadania passa pelo direito a ter direitos.
Crianças são o que temos de mais precioso. São a esperança de um futuro melhor. Estão juridicamente protegidas durante conflitos armados. São quatro Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos adicionais de 1977.
Assistimos a lideranças fazendo apelos pela vida delas em situações de guerra. No entanto, crianças não devem ser usadas como instrumento de narrativas políticas ou ideológicas. Devemos nos dar conta de que as crianças estão acima de qualquer discurso, especialmente em tempos de guerra. Portanto, o esforço deve ser feito para garantir a aplicação do marco legal.
Nesse sentido, pelo Direito Internacional Humanitário, as crianças são duplamente protegidas: enquanto civis ou pessoas que não participam das hostilidades; e a proteção específica a que têm direito enquanto crianças. Há mais de 25 artigos nas Convenções de Genebra e seus Protocolos que fazem referência às crianças. São regras que incluem acesso à comida, cuidados médicos, educação em zona de conflito, e que tratam de temas como detenção e separação das famílias.
Os direitos garantidos na Convenção Internacional dos Direitos da Criança também são aplicáveis em conflitos armados. A Convenção é ratificada quase em âmbito global e entrou em vigor em 1990. O artigo 38 é explícito ao afirmar que “os Estados Partes se comprometem a respeitar e a fazer com que sejam respeitadas as normas do direito humanitário internacional aplicáveis à criança em casos de conflito armado”. Nota-se que a Convenção considera criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo em conformidade com a lei, a maioridade seja atingida antes.
Em 2021, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) identificou e condenou seis graves violações contra crianças e adolescentes em tempos de guerra:
- Matança e mutilação de crianças e adolescentes;
- Recrutamento ou uso de crianças e adolescentes nas forças armadas e grupos armados;
- Ataques a escolas e hospitais;
- Estupro ou outra violência sexual grave;
- Rapto de crianças e adolescentes;
- Recusa de acesso humanitário para crianças e adolescentes.
De acordo com o Unicef, as Nações Unidas verificaram cerca de 14.900 incidentes de recusa de acesso humanitário para crianças e adolescentes entre 2005 e 2020, com 80% dos casos ocorridos entre 2016 e 2020. Trabalhadores humanitários muitas vezes são visados ou tratados como ameaças.
Entre 2005 e 2020, foram confirmadas mais de 266 mil violações graves contra crianças e adolescentes em mais de 30 situações de conflito na África, Ásia, Oriente Médio e América Latina. O número é ainda maior, uma vez que há restrições de acesso e segurança para registro dos casos das violações.
Após quase cem dias de guerra na Ucrânia, em junho de 2022, 5,2 milhões de crianças e adolescentes precisavam de ajuda humanitária, de acordo com dados do Unicef. Desse total, três milhões na Ucrânia e mais de 2,2 milhões em países que acolhem refugiados ucranianos precisavam de assistência. Pelo menos 262 meninos e meninas morreram e 415 ficaram feridos nos ataques.
O número de mortos no conflito entre Israel e o grupo Hamas, que já dura uma semana, passou de três mil. Este é o maior conflito armado na região nas últimas décadas e há previsão de uma escalada da violência. De acordo com a Defesa em Israel, 1.300 israelenses já perderam a vida.
O governo de Israel teria divulgado fotos de 40 bebês mortos durante o ataque terrorista do Hamas. Do lado palestino, o Ministério da Saúde da Palestina informou que são 1.799 mortos, sendo 583 crianças e 351 mulheres.
Além dos esforços do Unicef e seus parceiros, a agência da ONU ressalta a necessidade de uma pressão pública e política sustentada para garantir que as crianças e os adolescentes não sejam mais alvo de guerras. O Brasil está na presidência provisória do Conselho de Segurança da ONU e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou nota com apelo pela libertação de crianças reféns na zona de conflito entre Israel e Hamas.
Precisamos agora de mais firmeza no apelo para uma intervenção humanitária urgente, na condução da paz e na defesa do direito de crianças e adolescentes terem acesso imediato aos seus direitos. Na Palestina, em Israel e também em conflitos e guerras que saíram dos holofotes da mídia, como na Ucrânia, no Sudão do Sul e na República Democrática do Congo.
Foto do destaque: Ucrânia/UNICEF/Filippov
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