Quase a metade da população de 2,3 milhões de pessoas em Gaza tem menos de 18 anos de idade. Quatro em cada cinco crianças convivem com depressão, medo e tristeza por conta do constante trauma das agressões a que são submetidas na região. Os dados são de um relatório da organização Save the Children de 2022. Mais da metade têm pensamentos suicidas e o trauma de testemunhar a morte de outras crianças. A informação foi publicada nesta semana pela Al Jazeera.
Quem acompanha o perfil de Motaz Azaiza no Instagram chega a ter um alento com a foto da menina que ensaia um sorriso numa escola de Gaza. Azaiza é fotógrafo e trabalha para a agência da ONU para refugiados da Palestina (UNRWA). Ele publica imagens do cotidiano palestino, que se tornaram ainda mais impactantes nos últimos dias, depois do ataque terrorista do grupo Hamas a Israel em 7 de outubro.
Junto com a foto da menina, há outras poucas cenas que dão uma réstia de esperança. Um grupo de meninos joga bola, outros brincam com um avião de papel. Azaiza consegue ainda reunir uma galerinha para um clique. Em Gaza, as pessoas costumam correr para as escolas administradas pela ONU para se abrigar quando os conflitos esquentam.
Na tarde de 7 de outubro, Samar Abu Elouf, fotógrafa freelancer do New York Times baseada em Gaza, visitou uma escola no bairro central de Al-Nasr. Quando Samar chegou ao lugar, muita gente já estava ali. Havia crianças brincando no pátio. Algumas tinham levado brinquedos das salas de aula.
Uma conferência em Varsóvia, na Polônia, reuniu especialistas em saúde mental de várias partes do mundo para discutir os impactos do trauma da guerra em crianças, adolescentes e suas famílias. O evento foi realizado em maio de 2022 e teve como foco o deslocamento forçado de mais de 14 milhões de pessoas da Ucrânia, de acordo com o site Yale School of Medicine.
Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) revelam que dos 14 milhões de deslocados na Ucrânia, 6,5 milhões passaram a fronteira e buscaram refúgio em outro país. A Polônia recebeu o maior número de refugiados ucranianos, cerca de 3,5 milhões, e o restante seguiu para países vizinhos, como Romênia, Rússia, Hungria, Bielorrússia e Moldávia. Dados do Unicef indicam que 90% dos refugiados da Ucrânia são mulheres e crianças.
Segundo o Professor James F. Leckman, do Centro de Estudos da Criança de Yale (YCSC), que participou do evento em Varsóvia, o tema deve ser abordado com urgência. O objetivo é ajudar crianças e adolescentes a lidar com as múltiplas consequências traumáticas, agudas e potenciais a longo prazo de serem vítimas da guerra.
No Rio de Janeiro, o conflito urbano entre organizações criminosas de traficantes, milícias e as forças policiais na cidade chega a ser considerado situação de guerra por especialistas em segurança. Um estudo recente revelou, a partir de relatos de educadores e familiares, o impacto da exposição à violência na saúde mental das crianças no maior conjunto de favelas da cidade.
O relatório Primeira Infância na Maré, divulgado pela ONG Redes da Maré, mostrou que a exposição precoce à violência prejudica a participação escolar e o acesso ao lazer, cultura e esporte. Em 2022, 62% das ações policiais foram perto de escolas e creches. Em seis favelas, mais de 10% das crianças de 0 a 6 anos já viram a violência policial e numa das 16 favelas da Maré escapou dessa realidade.
Entre os prejuízos identificados à saúde mental apontados pelo estudo na Maré estão abalo emocional, sentimentos de medo, assombro e aflição, além de mudanças de comportamento. Profissionais de educação afirmam que, ao brincar, as crianças expressam carga de tensão e reproduzem atitudes nas brincadeiras, simulando o uso de armas, por exemplo. Há ainda relatos de crianças com choro compulsivo, que pedem para ir para casa, que fazem xixi nas calças, ficam mais agitadas e menos produtivas.
Leckman afirma que as intervenções de saúde mental e psicossociais para crianças e adolescentes afetados pela guerra devem ser feitas em vários níveis e orientadas para suas necessidades específicas. Há uma variedade de situações e, por isso, diferentes consequências que demandas variadas abordagens. O primeiro passo, portanto, é avaliar as necessidades de cada criança e adolescente para decidir quais são os recursos indicados.
Neste sentido, as intervenções de apoio imediatas devem centrar-se no fornecimento de recursos físicos e emocionais básicos para que recuperem a sensação de segurança. “Obviamente, apoiar estas crianças e jovens também implica capacitar e apoiar os seus pais e cuidadores”.
Em Israel, de acordo com a Al Jazeera, um grupo de voluntários se mobilizou para doar mantimentos, brinquedos e ajuda psicológica em um hotel de Tel Aviv para sobreviventes do ataque terrorista do Hamas de uma semana atrás. “Muitas pessoas que buscam se proteger no hotel estão com a sensação de que foram resgatadas e se culpam por isso”, conta a psicóloga, fazendo referência à “culpa do sobrevivente”, um fenômeno conhecido na psicologia e que merece atenção porque pode ter consequências fatais.
Quanto às crianças e aos jovens desacompanhados e separados que fogem da guerra, os especialistas da conferência de Varsóvia afirmam ser necessárias medidas imediatas para atender às suas necessidades. Muitos deles não só tiveram suas vidas perturbadas como foram vítimas de abuso e do tráfico. Não têm cuidados parentais e correm mais risco de violência, abuso e exploração.
Após a conferência de 2022, ficou decidido que implementariam um plano de ação para as vítimas de guerra. O plano deve incluir políticas de longo prazo para construir resiliência e uma cultura de paz, com a ajuda da Fondazione Child e da Organização Mundial da Saúde. O material científico psicoeducacional será apresentado e discutido em conferência.
A comunidade internacional se deu conta de que precisa tornar os cuidados mais acessíveis. Isso inclui otimizar o uso de ferramentas inovadoras, como o uso de plataformas digitais utilizadas por crianças e adolescentes. Também devem desenvolver intervenções individuais e de grupo baseadas em evidências que sejam culturalmente sensíveis e fornecidas em vários idiomas.
Há uma crise global crescente de saúde mental entre crianças. Diversas organizações humanitárias, como Médicos Sem Fronteiras, Save the Children e Unicef, afirmam que há necessidade de uma intervenção de profissionais para mitigar e tentar prevenir efeitos da guerra no longo prazo, especialmente em crianças em situação de maior vulnerabilidade.
Artigo de 2022 no Psychiatric Times faz uma chamada para o apoio de crianças vítimas da guerra para prevenir traumas no futuro. Os médicos afirmam que as crianças precisam se sentir seguras para ganhar de volta sua voz e dar sentido à dor que suportaram.
0 comentários