A chegada de crianças e adolescentes migrantes e refugiados ao Rio de Janeiro marca o início de uma jornada complexa, frequentemente vivida em silêncio. Para além das barreiras burocráticas e da busca por segurança e estabilidade, a adaptação desses jovens passa por desafios profundos na comunicação e no bem-estar emocional – aspectos cruciais para uma integração real na nova sociedade. Compreender essa dinâmica é vital, mas nem sempre é uma prioridade reconhecida.
Essa realidade é o foco de estudo da professora Regina Andrade, pesquisadora e docente com mais de 12 anos de experiência no tema na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPGPS). Seu trabalho investiga, entre outros elementos, o chamado “Bilinguismo Cultural”, observando como fatores psicossociais influenciam a capacidade das crianças e seus familiares de dominar o português brasileiro, ferramenta essencial para a integração escolar e social.
No entanto, a relevância do tema não garante um caminho fácil para a pesquisa. “Recebi um parecer dizendo que eu estava com uma população que não era interessante para a pesquisa”, relata Andrade sobre uma das barreiras enfrentadas ao tentar aprovar um projeto. Essa resistência inicial sublinha uma triste ironia: a invisibilidade que muitas vezes cerca as necessidades específicas de um grupo que luta justamente para se fazer entender e pertencer.
O estudo liderado por Andrade, concebido em três etapas, busca traçar um perfil detalhado da chegada e adaptação dessas crianças. “Eu tenho que fazer um projeto adaptado ao imigrante”, explica a professora sobre a motivação. “Fiquei pensando de que maneira eu poderia entrar com um projeto para ver e para analisar as crianças… E, imediatamente, através dos estudos e de outras pesquisas, a questão da linguagem apareceu muito fortemente. Então, nós montamos um primeiro projeto chamado Bilinguismo Cultural. E esse trabalho foi feito com crianças da Aldeia Infantil S.O.S. Itanhangá.”
A pesquisa utiliza testes psicológicos e observação para entender as dificuldades na aquisição da nova língua, especialmente em crianças venezuelanas (um fluxo significativo no cenário recente), e busca identificar alternativas pedagógicas e de apoio para superar esses obstáculos.

Brasil: Leis Acolhedoras, Desafios Práticos
Em um cenário global frequentemente marcado pelo endurecimento das políticas migratórias, o Brasil se destaca por uma estrutura historicamente mais aberta. O país possui acordos bilaterais com cerca de 90 nações que dispensam reciprocamente a exigência de visto para determinadas estadias, facilitando a circulação. “O governo brasileiro é um dos que melhor acolhem os imigrantes e refugiados [em termos legais], com leis anteriores ao governo de Getúlio Vargas”, salienta Regina Andrade.
Dados de órgãos como o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) confirmam um fluxo migratório expressivo nas últimas décadas, com milhões de pessoas entrando e circulando pelo território nacional. Legalmente, refugiados reconhecidos no Brasil têm acesso a direitos fundamentais equiparados aos dos cidadãos brasileiros, como trabalho, saúde e educação.
Contudo, a garantia legal nem sempre se traduz em acesso facilitado na prática. Barreiras burocráticas, desconhecimento, dificuldades com documentação e a própria barreira linguística podem dificultar o acesso a serviços essenciais e a programas sociais, como o Bolsa Família ou bolsas de estudo, criando um hiato entre o direito e a realidade vivida.
A Língua e o Estresse: Um Foco Inesperado nas Mães
Para crianças e adolescentes, a língua é talvez o maior e mais imediato desafio na adaptação. A pesquisa de Andrade aprofundou-se em como o estresse, frequentemente associado à experiência migratória traumática ou desafiadora, poderia impactar essa aprendizagem. Os resultados, porém, surpreenderam.
“Quando nós chegamos a uma doutora da minha equipe, que era especialista em estresse… ela propôs que a gente investigasse alguns dados de estresse. Nós investigamos as famílias, as mães, as crianças e nós não encontramos os dados que a gente pensava que fosse encontrar. Ou seja, um alto estresse [nas crianças] para aquisição da língua”, detalha a professora.
Onde, então, residia a maior tensão? “Nós encontramos estresse nas mães”, revela Andrade. A explicação reside na ansiedade materna pela integração dos filhos: “porque uma mãe migrante quer que seu filho se adapte, ela quer que seu filho aprenda logo a língua, ela quer aprender com ele, porque ele está aprendendo.”
A relevância da descoberta se dá pelo fato de que ela desloca o foco da intervenção, sinalizando que o bem-estar e a capacidade de adaptação das mães estão intrinsecamente ligados ao progresso das crianças.
Essa constatação ilumina a complexa rede de adaptação familiar. A pressão sobre a mãe migrante vai além da aprendizagem do idioma: ela assume o papel de guia da família no novo território, conciliando escola, saúde e redes de apoio, enquanto enfrenta o próprio luto migratório e desafios de inserção. Seu estresse não é isolado — é um termômetro das tensões vividas por toda a família, com efeitos na saúde mental, na dinâmica interna e na construção de pertencimento em um lar ainda desconhecido.
Diante dessas camadas de tensão familiar, a pesquisa agora se volta para uma etapa igualmente sensível. Neste ano de 2025, a equipe se dedica à terceira etapa do projeto, focada nos adolescentes e jovens adultos migrantes e refugiados. O objetivo é investigar seus processos específicos de adaptação sociocultural e psicológica – como identidade, educação e trabalho.
A iniciativa surgiu a partir da demanda da orientadora pedagógica Ana Cristina Nunes, das Aldeias Infantis SOS-Brasil-Itanhangá, instituição criada pelo Acnur que acompanha de perto esses jovens. Ao identificar a necessidade de compreender melhor suas vivências, fortaleceu-se a parceria entre universidade e prática do acolhimento — essencial para produzir pesquisas com impacto real, que orientem políticas públicas e garantam apoio efetivo à integração dessa geração no Rio de Janeiro.
Foto em destaque: Crianças nas dinâmicas da instituição Aldeias Infantis SOS-Brasil-Itanhangá. (Foto: FAPERJ)
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Por Luã Souza, Nina Ribeiro e Yves Reis (Alunos de Laboratório de Cidadania da Escola de Comunicação da UFRJ), sob supervisão de Fernanda Paraguassu
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