Papo sério

A Dor Premiada

por | 4 jun, 2025 | cultura e esporte, papo sério

Walaa, 5 anos de idade. Foto: Magnus  Wennman

Crianças refugiadas sob lentes premiadas, uma análise da série fotográfica ‘Where the Children Sleep’ de Magnus Wennman

“Walaa, 5 anos, quer voltar para casa. Ela tinha seu próprio quarto em Aleppo, uma cidade localizada no norte da Síria. Lá, ela nunca costumava chorar na hora de dormir. No campo de refugiados, ela chora todas as noites. Apoiar sua cabeça no travesseiro é horrível, ela diz, porque a noite é horrível. Era quando os ataques aconteciam. Durante o dia, a mãe de Walaa constroi uma casinha de travesseiros para ensinar a ela que não há nada a temer”.

É essa a descrição que o fotógrafo sueco, Magnus Wennman, nos oferece da imagem. Walaa foi uma das mais de 20 crianças refugiadas capturadas pelas lentes de Wennman, autor da série Where the Children Sleep (Onde as Crianças Dormem), que consegue transformar o ato íntimo de dormir em uma denúncia pública de ampla repercussão.

Em 2015, ele percorreu seis países – Jordânia, Líbano, Turquia, Hungria, Sérvia e Grécia – fotografando a vulnerabilidade desses pequenos ao adormecerem, ou pelo menos tentarem, em ruas, abrigos improvisados, hospitais e fronteiras. Fotos de infâncias arruinadas por crises humanitárias sensibilizam o mundo e alertam sobre a calamidade das zonas de conflito.

Mas, qual é o limite entre denúncia e exploração? Até que ponto a dor alheia pode ser registrada sem se tornar um espetáculo? São perguntas pertinentes que ainda fomentam grandes debates. 

Where the Children Sleep ganhou diversas premiações de prestígio no mundo do fotojornalismo. Mesmo com o reconhecimento internacional, você, muito provavelmente, não sabe como a história de Walaa evoluiu. Isso significa que o futuro das crianças refugiadas continua sendo um desafio global enquanto a dor continua a ser premiada.

Quem é Magnus Wennman e qual o trabalho por detrás da série:

“Jornalista visual, embaixador da Canon. Fotógrafo do Aftonbladet e da National Geographic. Dono de cachorro. Mas, acima de tudo, sou pai.” É assim que Magnus Wennman, nascido na Suécia em 1979, se apresenta em sua bio do Instagram. Ele iniciou a carreira jornalística aos 17 anos em um veículo local chamado DalaDemokraten, e, desde então, já trabalhou em mais de 80 países, cobrindo desde eleições nos Estados Unidos até crises humanitárias na África, no Oriente Médio e na Europa.

Seu projeto mais marcante é a série Where the Children Sleep (2015), que documenta crianças refugiadas sírias dormindo em ruas, florestas, hospitais e campos improvisados. A série começou em campos de refugiados no Líbano, Jordânia e Turquia, e depois se expandiu para rotas migratórias na Sérvia, Hungria, Grécia e Suécia. As imagens capturam o medo, a vulnerabilidade e o trauma de uma infância em fuga.

A motivação para o projeto veio de um lugar pessoal. Ao colocar seu filho pequeno para dormir, Wennman refletiu sobre o quanto uma criança precisa se sentir segura à noite. Ao ver crianças dormindo em situações precárias por causa da guerra na Síria, sentiu-se emocionalmente impactado. Seu objetivo era mostrar que todas as crianças — independentemente de onde estejam — precisam de um lugar seguro para dormir.

Publicada originalmente no jornal sueco Aftonbladet, a série teve ampla repercussão internacional, especialmente após a comoção provocada pela morte do menino Alan Kurdi, com o corpo já sem vida na beira de uma praia. O ensaio foi exibido em 17 países, apresentado no Capitólio dos EUA e na sede da ONU em Nova York, além de espaços públicos, escolas e igrejas. A série também cumpriu um papel prático: ajudou a arrecadar fundos para o ACNUR por meio de exposições e eventos beneficentes.

Ao longo da carreira, Magnus Wennman recebeu mais de 70 prêmios, incluindo seis World Press Photo Awards, uma das maiores honrarias do fotojornalismo mundial. Além da fotografia, atua como cineasta: seu curta Fatima’s Drawings (2016), que retrata a jornada de uma criança refugiada por meio de seus desenhos, venceu o prêmio de melhor narrativa digital no festival Visa d’Or, em Perpignan, na França.

Entre os diversos reconhecimentos que recebeu, um dos mais significativos foi o World Press Photo Award de 2016, na categoria People – Singles. A foto vencedora retrata a menina síria Shiraz, de 9 anos, deitada em um berço de madeira em um campo de refugiados em Suruc, na Turquia. Shiraz sofre de paralisia e não consegue falar — ela foi diagnosticada com pólio ainda bebê, mas o conflito impediu o tratamento. Na foto, ela aparece envolta por cobertores, imóvel, com o olhar vazio.

Shiraz, 9 anos de idade. Foto: Magnus Wennman

Ao anunciar o prêmio, o júri da World Press Photo elogiou a capacidade de Wennman de “combinar narrativa jornalística com sensibilidade artística”, destacando que suas imagens mostram sofrimento sem sensacionalismo, com empatia e profundidade humana. A imagem foi amplamente reproduzida em jornais e exposições ao redor do mundo, ajudando a chamar atenção internacional para a situação dos refugiados sírios — especialmente as crianças com deficiência ou em estado de saúde grave.

Esse prêmio consolidou Where the Children Sleep como uma obra essencial no jornalismo visual contemporâneo.

Entre Ver e Expor

Em meio a colchões improvisados, travesseiros doados e o som abafado do medo, Magnus Wennman capturou o que muitos não ousaram olhar de frente: crianças em fuga. Mas o ato de olhar não é inocente. No gesto de contar, o fotógrafo abriu uma pergunta que ecoa até hoje: quando olhamos para essas imagens, estamos vendo as crianças — ou apenas consumindo a sua dor? Entre dar visibilidade e transformar corpos vulneráveis em espetáculo, existe uma linha tão tênue que quase desaparece sob a lente da câmera.

Fotografar é sempre escolher: o que entra no quadro, o que fica de fora, que luz acende a cena, que sombra preserva a intimidade. Em Where the Children Sleep, Wennman escolheu uma luz doce, quase etérea. As crianças parecem flutuar em um espaço suspenso entre o horror vivido e o desejo de paz. A estética é bela – e talvez seja justamente aí que a ferida começa.

Essa delicadeza estética aproxima o olhar. Mas, como adverte Susan Sontag em Diante da Dor dos Outros, existe sempre o risco de que a beleza das imagens suavize a brutalidade que deveriam denunciar. Embelezar a dor, ainda que involuntariamente, pode transformar a tragédia em algo suportável e, portanto, mais fácil de esquecer. As imagens expõem e denunciam, mas também seduzem. O cuidado estético pode deslizar para a exploração — transformar o sofrimento em algo admirável, compartilhável, consumível.

Box: “As pessoas podem desligar a tevê não só porque uma constante dieta de imagens de violência tornou-as indiferentes, mas porque têm medo. Como todos já observaram, existe uma curva ascendente da violência e do sadismo aceitáveis na cultura de massa: filmes, programas de tevê, quadrinhos, jogos de computador. Uma imagística que teria feito o público encolher-se e virar a cara de nojo quarenta anos atrás é vista sem sequer um piscar de olhos por qualquer adolescente nos cinemas. De fato, para muitas pessoas na maioria das culturas modernas, a brutalidade física é antes um entretenimento do que um choque. Mas nem toda violência é vista com igual distanciamento. Algumas desgraças são mais passíveis de ironia do que outras.” (Diante da Dor dos Outros, 2003) 

O Silêncio do Consentimento

O sono das crianças fotografadas por Wennman é pesado, não apenas pela exaustão, mas pela ausência de escolha. Em contextos de deslocamento forçado, o consentimento é um território movediço. Aquelas crianças — ou suas famílias — compreenderam que suas imagens atravessariam oceanos, expostas em museus, relatórios da ONU, jornais, timelines? Consentir não é apenas autorizar um clique.

Ariella Azoulay, em The Civil Contract of Photography, sugere que toda fotografia é um contrato moral — uma promessa de responsabilidade entre quem fotografa, quem é fotografado e quem vê. Quem fotografa tem a obrigação de preservar a dignidade de quem é fotografado, mesmo quando este não pode expressar plenamente sua vontade.

No contexto da migração forçada, onde medo e vulnerabilidade dominam, a ideia de consentimento pleno se dissolve. Muitas vezes, o que se captura é menos uma permissão e mais uma rendição silenciosa diante da urgência da sobrevivência. Como propõe a teórica, essa responsabilidade se estende aos espectadores. Quando assistimos a Where the Children Sleep, precisamos perguntar: estamos cumprindo esse contrato ou violando-o?

O Valor da tragédia

A série fotográfica foi amplamente divulgada, premiada e celebrada.  Magnus Wennman conquistou reconhecimento internacional e, ao mesmo tempo, despertou a comoção de um público global que, muitas vezes, só reconheceu a crise dos refugiados como uma pauta urgente por essas imagens.

No entanto, há um abismo entre o reconhecimento estético e a transformação concreta que poderia resultar dessa comoção. Para as crianças fotografadas, a visibilidade não garante mudança. Seus corpos adormecidos, mostrados em galerias e timelines, talvez não tenham encontrado nenhum alívio real.

É preciso questionar quem realmente se beneficia dessas imagens. O fotógrafo, as instituições culturais, as premiações? Ou será que, ao final, a maior parte da força dessas imagens acaba servindo para reforçar o valor simbólico de quem as exibe, não de quem nelas está retratado? O sofrimento infantil, exibido como testemunho, vira também mercadoria de empatia: compartilhado, comentado, consumido.

Há quem diga que essas imagens despertam solidariedade, que geram doações e projetos sociais — e, de fato, algumas campanhas foram impulsionadas a partir delas. Mas até que ponto a necessidade de exibir corpos vulneráveis em situações tão íntimas é justificada por esse possível benefício?

O que fica, então, para essas crianças? As imagens as eternizam como vítimas e, muitas vezes, fixam nelas um rótulo que obscurece qualquer outra faceta de suas vidas. Nenhum retrato revela quem são, o que sonham, o que perderam — apenas mostra onde dormem, quando dormem e como dormem. E, assim, mesmo a ternura das fotos reforça a desigualdade: o conforto de quem olha e a impotência de quem não pode escolher como será visto.

Da imagem à ação

A série Where the Children Sleep ganhou destaque em museus, instituições diplomáticas e publicações de grande circulação. Foi exibida na sede da ONU, percorreu galerias, escolas, conferências. Mas exposição é diferente de transformação. As premiações elogiam a beleza das fotos e a coragem de mostrar a tragédia, mas raramente questionam como essas imagens podem contribuir para mudar as estruturas que perpetuam a crise dos refugiados.

Algumas organizações usaram as fotografias para impulsionar campanhas de arrecadação e, pontualmente, conseguiram gerar ajuda material e apoio às famílias em situação de vulnerabilidade. Entretanto, permanece a dúvida: por que é preciso exibir crianças adormecidas em ruínas para que o mundo reconheça sua dignidade? 

O sociólogo francês Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, afirmou: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.” No mundo contemporâneo, até a dor se converte em espetáculo, transformada em mercadoria emocional — algo a ser consumido rapidamente antes que se busque a próxima comoção.

A circulação incessante dessas fotografias em espaços de prestígio e poder reforça essa dinâmica: o sofrimento real das crianças capturadas por Wennman acaba se tornando parte de um ciclo de consumo estético e de prestígio simbólico, onde as imagens adquirem valor próprio, mas a realidade concreta permanece à margem.

Talvez a pergunta mais difícil não seja sobre o fotógrafo, nem sobre a imprensa, nem sobre a estética. Talvez a pergunta seja sobre nós. Quando olhamos para essas crianças, deitadas no chão frio, estamos realmente olhando para elas — ou para nossa própria capacidade de sentir? Talvez, para algumas crianças, a repercussão das imagens tenha gerado redes de apoio reais. Mas, para muitas outras, o sono improvisado permanece. O chão continua frio. A noite, interminável.

O que diz o código de ética do fotojornalismo sobre retrato de crianças?

O código de ética do fotojornalismo não é um único documento oficial, mas várias entidades no Brasil e no mundo têm diretrizes que abordam o uso de imagens de menores de idade no jornalismo. De forma geral, a principal diretriz é proteger a dignidade da criança, garantindo que seu retrato não seja explorado, exposto de forma degradante ou cause qualquer dano à sua integridade física, emocional ou social.

No cenário internacional, a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989, estabelece princípios fundamentais que norteiam a atuação da mídia. O documento, aceito pela maioria dos países, afirma que todas as crianças (definidas como pessoas com menos de 18 anos) têm direito à proteção contra qualquer forma de exploração e que seus interesses devem ser prioridade em todas as decisões que lhes digam respeito. Em especial, o artigo 16 reconhece o direito à privacidade e à proteção integral contra interferências ilegais em sua vida pessoal, incluindo a proteção da sua imagem.

Códigos de ética como o da National Press Photographers Association (NPPA), dos Estados Unidos, também reforçam que crianças devem ser tratadas com respeito, sendo necessário cuidado especial em situações de vulnerabilidade para não perpetuar estigmas ou agravar sofrimentos, gerando danos irreparáveis. Qualquer divulgação de imagens de menores de idade precisa ter como objetivo o bem-estar da criança.

No Brasil, o cuidado com o retrato de crianças é regulado por uma combinação de normas jurídicas e éticas, seguindo princípios similares aos apresentados anteriormente. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (Fenaj) determina que é dever do profissional respeitar a dignidade, privacidade e os direitos das pessoas retratadas, com especial atenção aos menores de idade.

Fotografar crianças, sobretudo em situações de vulnerabilidade, exige autorização dos responsáveis e o cuidado para que a imagem não prejudique a criança. Além disso, o jornalista deve evitar conteúdos de caráter sensacionalista ou contrário aos valores humanos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instância que regulamenta os direitos de menores de idade em território nacional, assegura a inviolabilidade da imagem, da identidade e da honra de menores (artigo 17), exigindo proteção especial quando se trata de exposição midiática. Diferente da regra geral do Código Civil – que admite o uso da imagem sem autorização em casos de interesse público –, no caso de crianças e adolescentes, o ECA exige que, além do interesse público, o uso da imagem não traga riscos ao seu pleno desenvolvimento.

A interligação entre os códigos de ética jornalísticos e a Convenção da ONU se torna ainda mais evidente em coberturas que envolvem o uso de imagens de migrantes refugiados menores de idade. Crianças em deslocamento forçado frequentemente vivem situações extremas de vulnerabilidade, e sua exposição em reportagens fotográficas sem consentimento, ou de maneira sensacionalista, além de desrespeitar princípios éticos do jornalismo, pode violar os direitos fundamentais e comprometer a dignidade dessas crianças.

Portanto, o fotojornalista tem o dever de adotar práticas responsáveis: buscar o consentimento dos responsáveis sempre que possível, evitar a identificação de menores em risco e priorizar o interesse superior da criança na escolha e divulgação das imagens. Em um cenário de crise humanitária, o compromisso ético não é apenas um requisito profissional, mas um imperativo moral para proteger aqueles que estão em situação de maior fragilidade.

O debate sobre a fotografia de crianças migrantes e refugiadas exige sensibilidade, conhecimento técnico e respeito pelos direitos humanos. O fotojornalismo, enquanto instrumento de informação e transformação social, deve sempre atuar em favor da proteção dos direitos humanos, especialmente daqueles que ainda estão em processo de desenvolvimento e que não possuem meios plenos de defesa. O retrato de crianças deve ser uma ferramenta de denúncia e empatia, nunca de exploração.

Entrevistas Autorais 

Larissa Costa Murad, 39 anos 

Docente do curso de Serviço Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Quais princípios dos direitos humanos devem ser considerados ao expor publicamente imagens de crianças em contexto de deslocamento forçado ?

Ao fazer essa exposição pública de crianças em deslocamento forçado por meio da fotografia, temos que considerar o direito à dignidade, o direito à privacidade e o próprio princípio do direito à vida pode ser problematizado quando a gente pensa essa questão. Muitas vezes, as imagens são usadas para denunciar os conflitos. O teor violento, cruel, desumano dos conflitos pode ser denunciado a partir das imagens. Quem não se lembra da imagem da criança correndo nua após as bombas de Hiroshima e Nagasaki? Aquela imagem ganhou o mundo e produziu uma sensibilização para o fato. Então a gente tem dois lados dessa moeda. A gente precisa considerar se a criança foi de alguma forma apartada dos seus responsáveis, até que ponto a imagem dessa criança pode ser usada? E uma outra questão é como fazer as pessoas se identificarem e sentirem o horror de um conflito armado. O horror de um deslocamento forçado. O horror dos atingidos pela questão socioambiental. Como fazer as pessoas se sensibilizarem para isso? E aí a gente tem a fotografia como algo também universal. Então a exposição dessas crianças pode ser usada também no sentido de sensibilizar. Mas mesmo nesse sentido, o cuidado com o direito à dignidade e privacidade daquela criança precisam estar também colocados.

A exposição de crianças refugiadas em situação de sofrimento pode ser entendida como uma violação de seus direitos à privacidade e à dignidade?

Sim, dependendo do caso, a exposição de crianças refugiadas em situação de sofrimento pode sim ser entendida como uma violação de seus direitos à privacidade e dignidade. Quando a gente pensa no direito à família, até essa questão é colocada em jogo. Ao veicular a imagem de uma criança, a gente tem que pensar também na família que ela tem no estado de origem, que pode ver essa imagem e está sujeita a um sofrimento muito grande. É com muito cuidado que tem que ser pensada a exposição dessas crianças. Se não for possível de ser feita com um pedido de autorização, porque muitas vezes elas não estão na companhia de seus pais, responsáveis ou familiares, nós temos que tomar cuidado, porque a imagem corre o mundo. E o que é feito dessa imagem. Uma coisa é o que o fotógrafo espera dessa imagem, que pode ser sim sensibilizar para a situação, outra coisa é o que vai ser feito dessa imagem. Então sim, em alguma medida, pode sim violar o direito à privacidade e dignidade da criança. 

Na sua opinião, qual é o limite ético entre denunciar uma realidade e explorar uma dor — especialmente quando se trata do uso de imagem de crianças?

Trata-se de um limite tênue entre denunciar uma realidade e explorar uma dor, especialmente quando se trata de crianças. A gente precisa também que aquela criança, caso sobrevivente, vai ficar marcada a vida inteira por aquela foto. E uma criança migrante está entrando em um país, então ela será retratada em um momento de maior vulnerabilidade naquela foto. Que, como eu falei, pode sim ser usada para denunciar um conflito, mas ao mesmo tempo, essa criança vai carregar isso caso ela seja uma sobrevivente. Hoje com as redes sociais, com a internet, a rapidez de multiplicação dessa comunicação é muito grande. Então pode-se fazer uma reportagem, constituir uma notícia com as fotos, e essas fotos serem usadas inclusive para outros fins. Então é algo que quando a gente bota na rede, não tem como controlar o uso que será feito dessa fotografia. Então acredito que sim, existe um limite ético muito tênue. A questão é: até que ponto essas crianças serão retratadas apenas como seres em vulnerabilidade, e não como seres que, como todos nós, carregam a sua potência. 

Como educadora em direitos humanos, que caminhos você vê para formar profissionais da comunicação mais conscientes e sensíveis ao retratar vulnerabilidades?

Muitas vezes somos ensinados a assumir uma postura neutra na comunicação. A gente vai lá, dá a notícia, ou registra uma foto, e vai embora. Até porque, ninguém pode resolver os problemas da humanidade individualmente. A gente se dessensibiliza também para trabalhar e sobreviver, assim como na minha área. Mas em que medida, se eu olhasse aquela criança como um filho meu, ou como um igual, será que eu teria mais cuidado com a reprodução da imagem? Como seria essa relação? Acho que esse é um grande passo, formar profissionais sensíveis em relação ao outro. Quem é esse “outro” que eu estou fotografando? Não é um objeto, é um sujeito. E talvez ele não queria ser retratado assim, e ele tem esse direito. Será que é possível perguntarmos também para as crianças? Tendo em vista que elas também são sujeitos e também tem a capacidade de pensar e articular. Será que conseguimos, ao tirar uma foto, mostrar a foto à criança e perguntar se ela gostou… Eu sei que em situações de conflito e de vulnerabilidade é muito difícil. Isso talvez fosse um passo para outros espaços. Mas eu acho que o principal é formar comunicadores que consigam enxergar esse limite tão tênue entre denunciar o fato e expor a criança. 

Marcela Chaves do Valle, 49 anos

Fotógrafa, pesquisadora e professora de fotografia 

Você acredita que o excesso de exposição a imagens de sofrimento infantil pode gerar dessensibilização no público?

O principal fator da questão da representação do sofrimento, é quando ele é a única representação de um determinado povo ou classe social. É o grande problema da “única história”, que a Chimamanda [Ngozi Adichie] fala, que é quando regiões, populações, são representadas na mídia de uma única forma. Quando a ênfase recai sempre na pobreza ou no sofrimento e na violência. E por outro lado, faltam imagens que representem a humanidade dessas pessoas. O dia a dia, o cotidiano, o que faz com que elas sejam vistas iguais a nós. A grande questão é você só ter imagens desse sofrimento. É óbvio que é importante você ter [registros das] questões dos refugiados, guerras, principalmente no que diz respeito às crianças, que é a parte mais sensível. É preciso que as pessoas saibam, conheçam o que está acontecendo. Isso é fundamental. É a base do jornalismo e do fotojornalismo. Muitas vezes, as próprias pessoas nessas situações querem ser retratadas porque elas querem que saibam o que está acontecendo com elas para que as pessoas possam ajudar de alguma forma. Agora, quando é só isso que aparece, é muito fácil cair nessa questão de que é só isso que eu vejo desse lugar ou desse povo.

Como o fotojornalismo pode contribuir para a construção de uma narrativa mais humana sobre a crise dos refugiados sem reforçar estigmas?

Ao cobrir uma crise humanitária, uma das coisas interessantes é humanizar o máximo possível. Colocar os dados daqueles indivíduos: nome, idade, sonhos. Aprofundar. Ir além de vítimas de uma crise. Quanto mais você consegue trazer a humanidade dessas pessoas, mais você consegue cativar e mostrar que são pessoas como você. Tirar desse lugar do “outro” para causar algum tipo de identificação. 

Qual o papel da autorização dos responsáveis em projetos como esse? Em contextos de crise, isso é sempre viável?

Sempre é necessário ter cuidado com o tipo de imagem que está sendo exposta e o que ela gera. Quanto mais sensível é o tema, mais cuidado você precisa ter em ver se essa imagem está expondo demais ou não, agregando coisas boas ou não. A intenção não deve ser só o sensacionalismo, mas você conseguir construir uma imagem que consiga não simplesmente chocar, mas criar uma empatia, já é um grande avanço. E essa questão da imagem é muito complicada. Às vezes é no olhar — o fotógrafo sente que pode fazer a imagem ou sente que não pode. Chegar fazendo imagens é muitas vezes só para colocar a imagem de mais uma mãe chorando no jornal. Eu particularmente não gosto, não me agrada. Acho que um jeito de melhorar essa representatividade é colocar foto da criança brincando, o mais humanizado possível para ver que aquela vida inocente foi perdida. 

Na sua opinião, há uma linha tênue entre sensibilizar e explorar? Como um fotógrafo pode evitar cair na estética da miséria?

É claro que o excesso de imagens de dor, miséria e violência não ajudam. É preciso criar imagens diferentes e potentes que sensibilizem. As pessoas já viram de tudo e se protegem, criam barreiras emocionais de defesa mesmo. E isso é normal. Isso é só mais um motivo para o fotógrafo não chegar achando que vai só registrar alguma coisa. Fotografar não é só um simples registro. Você tem que criar uma imagem forte que fure essas defesas, fure esse mar de mais do mesmo, e conte uma nova história. Que crie uma sensibilização. Agora, isso não é nem um pouco fácil. Não existe uma receita de bolo. Você não sabe exatamente se aquelas imagens que você está fazendo irão repercutir ou não. O fotógrafo está ali, presenciando aquele momento, às vezes com as suas próprias defesas, e está tentando fazer o melhor trabalho possível para criar imagens que contem essas histórias. Várias imagens, uma imagem só nunca é o suficiente. É sempre o recorte do recorte do recorte. E esse é um outro grande problema do fotojornalismo. Você precisa de várias imagens para contar uma história, e mesmo assim ela vai estar recortada. Quando o jornal coloca uma ou duas imagens sobre o assunto já é muito recorte do recorte. E se você ainda só fala daquela violência, daquela miséria, e você não conta mais nada sobre aquela região nunca, você vai só aprofundando esse problema.

World Press Photo de 2025

Ele está ali, parado diante da janela, onde a luz entra com suavidade. O corpo pequeno contrasta com a ausência: os dois braços perdidos em um bombardeio. Mahmoud, 9 anos, sobreviveu a um ataque em Gaza e agora vive no Catar, longe de casa, longe do que era conhecido, tentando reaprender o cotidiano com os pés.

A imagem que registra esse instante, capturada pelas lentes de Samar Abu Elouf, venceu o World Press Photo de 2025. Uma criança sem braços, envolta em luz, fotografada por uma conterrânea que também fugiu da guerra. Não há sangue, não há ruínas. Mas há o peso do que foi retirado — do corpo, da vida, da infância.

A foto percorreu o mundo. Ganhou manchetes, prêmios, discussões. E, com ela, vieram perguntas antigas e ainda urgentes: onde termina o testemunho e começa a exploração? O que fazemos com a dor do outro quando a transformamos em imagem? Há algo de irremediavelmente estético no sofrimento alheio quando ele é bem enquadrado?

O retrato de Mahmoud se soma a uma longa galeria de fotografias que cruzam fronteiras em nome da denúncia. Como na série “Onde as Crianças Dormem”, há aqui uma tentativa de capturar o impacto da guerra sobre os mais vulneráveis. Mas o risco — sempre presente — é que a empatia dê lugar ao consumo. Que o olhar do público se acostume à miséria como se fosse parte do espetáculo.

O menino na janela não fala. E talvez por isso a imagem grite mais do que deveria.

Mahmoud Ajjour, 9 anos de idade.
Foto: Samar Abu Elouf, The New York Times


Por Giovanna Peres, Luna Galera e Thaís Felgueiras (Alunas da Escola de Comunicação da UFRJ, sob supervisão de Fernanda Paraguassu)

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