Papo sério

Novamente deslocados: o impacto do clima na reafirmação de desigualdades

por | 4 jun, 2025 | comportamento e saúde, papo sério

Dorotea, refugiada burundiana e mãe solo, rega seu campo de batatas perto do assentamento
de refugiados de Maratane, Moçambique.
Foto: ACNUR/Hélène Caux

Com o aumento de eventos climáticos extremos, pessoas em situação de refúgio são forçadas a se deslocar outra vez e os problemas se intensificam em diversos aspectos

“Mamãe, nós vamos morrer afogados”, disse um dos filhos da venezuelana Miryan Ávila Gutierrez na noite de 2 de maio de 2024, de tanto escutar “lá vem a água”. As fortes chuvas começavam a inundar sua casa, no bairro do Sarandi, em Porto Alegre (RS). 

A cena aconteceu durante as fortes enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul. Foi descrita por Miryan à Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Essa foi a segunda vez que a venezuelana precisou largar tudo e abandonar seu lar com os filhos. Miryan é uma das mais de 600 mil pessoas forçadas a se deslocar devido ao maior desastre climático da história do estado. 

“A experiência de ter minha casa um mês embaixo d ‘água, me levou a entrar em uma crise de depressão. Porque olhar depois de cinco anos da minha vida trabalhando duro para poder ter a minha casa, eu me perguntava: ‘meu deus, mas por quê?’, eu perdi tudo na Venezuela, e aqui (no Brasil) também vou perder? Não pode ser”, descreveu a mulher. 

O caso de Miryan não é isolado. Nos últimos anos, eventos climáticos extremos, como o que atingiu o Rio Grande do Sul, estão se intensificando cada vez mais. Afetam, globalmente, quem já foi forçado a se deslocar, o que contribui para múltiplas crises sobre os direitos humanos e aumenta a pobreza e a perda dos meios de subsistência. 

Segundo a agência da ONU, das mais de 120 milhões de pessoas forçadas a se deslocar em todo o mundo, 90 milhões – ou seja, três em cada quatro delas – vivem em países fortemente impactados por eventos climáticos extremos

No fenômeno ocorrido no Rio Grande do Sul, por exemplo, ao todo, cerca de “2,4 milhões de pessoas foram impactadas, resultando em 183 mortes. Entre os afetados, estavam aproximadamente 43 mil refugiados e pessoas em necessidade de proteção internacional, a maioria venezuelanos (67%), haitianos (28%) e cubanos (3%)”. 

Na época, dos 43  mil refugiados que viviam no RS, cerca de 35 mil estavam em condições de vulnerabilidade, de acordo com dados do Governo Federal (CAD-Único/SUAS). “É importante entender que lidar com a mudança climática não é apenas sobre proteger o planeta, é sobre garantir os direitos das pessoas, suas casas, vidas e futuros”, disse Jana Birner, que liderou o relatório “Sem escapatória: na linha de frente das mudanças climáticas, conflito e deslocamento forçado”, da ACNUR, à Folha de São Paulo, em novembro de 2024.

Capa do relatório “Sem escapatória: na linha de frente das mudanças climáticas, conflito e deslocamento forçado”, da ACNUR. Foto: Reprodução. 

O levantamento mostra que, até 2040, o número de países que enfrentam extremos climáticos vai aumentar de três para 65. Em sua maioria, são países que já acolhem pessoas deslocadas, como o Brasil. Além disso, o documento traz que grande parte dos campos e abrigos de refugiados enfrentará o dobro de dias de calor extremo até 2050.

O relatório utilizou dados atuais para mostrar como as questões climáticas interagem com conflitos, empurrando as pessoas em situação de maior vulnerabilidade para situações ainda mais graves. 

“Desastres relacionados ao clima podem prender deslocados internos (PDIs) e refugiados em ciclos de deslocamento contínuo e prolongado”, mostra o levantamento. “As inundações resultaram em bilhões de dólares em danos econômicos que levarão muitos anos para serem reparados”, continua o levantamento. 

Impacto nas mulheres

Ao sair de seu lar pela primeira vez, na Venezuela, Myrian chegou ao Brasil pela fronteira em Roraima. Mãe solo na época, Miryan foi voluntariamente realocada para Porto Alegre. Lá ela recebeu apoio para acessar o mercado de trabalho, moradia e pôde encontrar uma nova comunidade. 

Em 2023, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) reconheceu 77.193 pessoas como refugiadas. Os homens corresponderam a 51,7% desse total e as mulheres, a 47,6%. Além disso, 44,3% das pessoas reconhecidas como refugiadas eram crianças, adolescentes e jovens com até 18 anos de idade.

Segundo pesquisa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), agência da ONU que assegura os direitos e o bem-estar de pessoas em situação de refúgio, 33% dos entrevistados não estão integrados juridicamente. O motivo é o desconhecimento de qualquer dever ou direito do serviço público ligado à sua condição. 

As pessoas refugiadas que vivem no Brasil desconhecem completa ou parcialmente os direitos que têm. Mesmo na condição de solicitantes de refúgio, podem obter documentos como o CPF, abrir contas bancárias e acessar serviços de saúde. 

Sem esse conhecimento, acabam excluídos de direitos básicos, como do Programa Dignidade Menstrual do Governo Federal. O programa visa garantir itens básicos de higiene menstrual a pessoas que menstruam, com idade entre 10 e 49 anos, e vivem em situação de extrema vulnerabilidade social. Para participar, basta estar inscrito no Cadastro Único (CadÚnico) e apresentar um CPF válido. Ainda assim, muitas pessoas que menstruam e estão em situação de refugiadas permanecem fora do programa por desconhecimento.

Para a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), vinculada à Fiocruz, Thaiza Dutra Gomes de Carvalho, a menstruação é um tema de saúde pública: “Tem impactos na qualidade de vida e de relações sociais [e] traz consequências como o aumento do risco de infecções[…]”. Thaiza, junto de Yammê Ramos Portella Santos, Maria do Carmo Leal, e Paula Andrea Morelli Fonseca, da Fiocruz Amazônia, realizaram uma pesquisa, apresentada em 2023 no Congresso de Saúde Coletiva – Abrascão sobre “Manejo menstrual de migrantes venezuelanas no Brasil”.

Mulheres em situação de refúgio também enfrentam desafios mensais, por vezes invisibilizados. Sem o mínimo necessário para lidar com o próprio corpo, são expostas a riscos à saúde física e mental, o que afeta a educação e a capacidade dessas mulheres de participarem na vida social e econômica.

O conceito de pobreza menstrual refere-se à falta de acesso a itens de higiene menstrual ou instalações sanitárias adequadas, e ainda é um grande problema de saúde pública. De acordo com dados de 2022 da Organização das Nações Unidas, pelo menos 500 milhões de meninas e mulheres no mundo carecem de apoio para ter uma menstruação digna. 

Na tragédia do Rio Grande do Sul, segundo informações disponibilizadas pela ACNUR, foi possível distribuir mais de 17 toneladas de itens de ajuda humanitária, como kits de higiene. Porém, não foi detalhado o número de famílias assistidas nem o impacto específico para meninas e mulheres em situação de emergência. Isso evidencia uma carência em destacar o tema, considerado “menos importante” em meios aos diversos problemas e urgências de uma crise.

O Brasil e os refugiados

O Brasil ocupa a sexta posição com o maior número de migrantes por conta de desastres chamados de naturais, de causas variadas, segundo o Relatório Global sobre Deslocamento Interno. Somente em 2023, 745 mil pessoas tiveram que se mudar devido a desastres ambientais. Número anterior à tragédia no Rio Grande do Sul.

Diferente dos refugiados de guerra, essas pessoas forçadas a saírem de seus territórios devido a desastres ambientais e/ou climáticos não têm proteção legal reconhecida juridicamente pelo Estatuto dos Refugiados de 1951, definido durante a Convenção das Nações Unidas realizada no mesmo ano, conhecida como Convenção de Genebra.

No entanto, a ACNUR reconhece os números alarmantes de eventos extremos e suas consequências na vida das pessoas ao redor do mundo. Por isso,vêm se movimentando ao longo do tempo para proteger essas populações, como o Fundo de Resiliência Climática do ACNUR, lançado em 2024.

Há também os esforços particulares de cada país para o atendimento a essas pessoas. No Brasil, a Lei 13445/2017 prevê vistos humanitários e residência temporária para diferentes situações, incluindo “calamidade de grande proporção, desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário”.

Além disso, o Projeto de Lei 1594/24, que tramita no Congresso Nacional, institui a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos (PNDAC), estabelecendo seus direitos à resposta humanitária, à saúde, à educação, ao trabalho, à assistência social, à moradia e à justiça. No entanto, por se tratar de “deslocados”, o projeto não abrange aqueles que se locomovem entre fronteiras – os refugiados. 

“Recomeçar outra vez”

Com o apoio do ACNUR , um ano após perder seu lar nas enchentes do Rio Grande do Sul, as perspectivas de reconstrução de Miryan são bastante diferentes de quando foi forçada a sair da Venezuela.

Durante a emergência, a Agência da ONU realizou escuta ativa das comunidades afetadas, capacitação de equipes locais e promoção da inclusão social e econômica de pessoas refugiadas. Além disso, a organização apoiou o estado e municípios na criação de planos de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

”Se eu deixei tudo na Venezuela e comecei de novo, por que não posso recomeçar outra vez?“ A venezuelana Miryan foi duplamente afetada pelas enchentes: após deixar seu lar na Venezuela, perdeu sua casa que construiu no Brasil, no bairro Sarandi, no Rio Grande do Sul.
©ACNUR/Vicente Carcuchinski

Danubia Maiara Nunes do Amaral, que vivia numa região ribeirinha de Canoas (RS), junto do marido e das três filhas, Aurora, Sofia e Bella, foi transferida para o Centro Humanitário de Acolhimento (CHA) Recomeço, na mesma cidade, após viver dois meses em um abrigo coletivo improvisado no Centro Olímpico de Canoas.

O CHÁ Recomeço foi gerido pela Agência da ONU para Migrações (OIM) e recebeu unidades habitacionais de emergência fornecidas pela Agência da ONU para Refugiados. 

Ao todo, o ACNUR disponibilizou 308 casas para atender as pessoas desabrigadas do estado.

Para a família de Danubia Maiara, passar a viver em uma dessas casinhas, por mais que seja uma solução temporária, fez uma diferença enorme. 

“Lá (no Centro Olímpico) não tinha essa privacidade que a gente tem aqui. Para nós, isso é muito importante porque a gente tem três meninas. Nos primeiros dias, ficamos com 600 pessoas no abrigo, sem saber quem eram. Eu dormia de um lado das meninas e meu marido dormia do outro. Foi uma maneira de a gente se proteger e protegê-las”, explicou a mulher ao ACNUR.

A brasileira Danubia Maiara Nunes do Amaralas filhas Aurora, Sofia e Bella moraram no CHA Recomeço a partir de julho de 2024, após perderem a casa devido às enchentes ©ACNUR/Vicente Carcuchinski. 

Com as enchentes de 2024, foi estabelecido um escritório da Agência em Porto Alegre, que seguirá com ações ao longo de 2025. Baseando-se no Quadro Estratégico do ACNUR para a Ação Climática, o Plano Estratégico para Ação Climática 2024-2030 da Agência detalha um roteiro global para ação prioritária, em apoio aos governos e em colaboração com uma ampla gama de parceiros para, até 2030, encontrar soluções e proteger um número crescente de pessoas deslocadas à força e apátridas,que fogem de crises climáticas e/ou vivem em países vulneráveis ao clima. 


Por Júlia Mendes, Giulia Canatto e Leonardo Nogueira (Alunos da Escola de Comunicação da UFRJ, sob supervisão de Fernanda Paraguassu)

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *