Papo sério

Uma autobiografia afroautorizada

por | 27 maio, 2025 | cultura e esporte, papo sério

Amanda Zola Bofenda, 22 anos, negra, brasileira, filha de congoleses — minha história cabe em uma frase? Não, se for lida com atenção. Ela é feita de encontros e desencontros entre culturas e línguas. Entre olhares que acolhem e outros que rejeitam. Cresci em dualidades: entre a África e o Brasil, entre o lingala e o português, e, às vezes, entre o silêncio e as palavras.

Não lembro da primeira vez que ouvi a língua materna de meus pais entrar pelos meus ouvidos, mas lembro dela adentrar a minha alma como fogo. Fogo que não se apagava. Eu tentava conter as chamas com baldes de água fria para que o efeito se fizesse por um breve tempo, tentando excluir o que me fazia diferente.

Ouvir minha tia falar aquelas palavras estranhas na frente dos meus colegas soava como um tiro — e a bala sempre me encontrava. Àquela altura, sendo alvo de risadas no pátio da escola, ficou gravada em minha memória que eu sentia vergonha. Lembro até hoje de dizer para ela não falar aquela língua.

Nem eu mesma sei se gostava de falar lingala. Passei minha infância ouvindo todo mundo falar: meus pais, tios e primos de consideração. Todos. Mbote, likambo, kosolola — o som da minha voz misturado ao dialeto, na verdade, parecia estranho. Era como se eu estivesse tentando fugir da minha realidade. Para ser sincera, eu fugia. Sentia-me vulnerável, como se meu corpo estivesse desconectado daquela sonoridade.

Quando eu estava na escola com os brasileiros — sei que também sou brasileira, mas ninguém me via daquela forma —, seus risos ecoavam em meu ouvido como zumbidos. E depois, o silêncio. Um silêncio ensurdecedor. De exclusão. Como se existisse uma barreira entre mim e eles. “Não sei porque está com medo. Você já está acostumada, já que veio da África”, foi o que ouvi de um colega de turma ao aproximar um inseto do meu rosto. Faz seis anos, que parecem seis meses. Carrego essa frase comigo. É impossível ignorar seu impacto.

Esta frase curta, tão pequena e dita com descaso, foi carregada de preconceitos. Ela revelou o lado mais profundo da ignorância e dos estereótipos culturais. Para os brasileiros — pelo menos em sua maioria —, a África é isso aí: fome, pobreza, conflito e mais palavras que deterioram ainda mais um continente que até hoje é visto como um país.

O começo

Em todos os meus anos na rede pública de ensino, eu vi de tudo. Observei o comportamento de meus colegas e a maneira turva com que lidavam com o diferente. Quando cheguei à Escola Municipal São Paulo, em Brás de Pina, em 2013, o ano foi tranquilo, mas eu estava insegura devido aos comentários negativos que faziam sobre ela — iam desde “perigosa” a “violenta demais”. Mesmo assim, por quatro anos estive ali, lidando com olhares e comentários predadores. 

Escola Municipal São Paulo / RJ

Durante aquele período assombroso — eu diria —, vi muita xenofobia contra africanos. Ter raízes congolesas naquele colégio era saber que a qualquer momento seria agredido verbal ou fisicamente — e eu presenciei um deles. Cheguei a me perguntar se era algo racial, mas alunos negros também a praticavam. Eram crianças e adolescentes tendo comportamentos xenofóbicos e, aos 13 anos, eu não entendia o porquê.

Quando eles ouviam o dialeto, sempre davam risada e tentavam imitar em tom de deboche. A língua congolesa era vista como vergonha. Até meu sobrenome era motivo de ataques — simplesmente por ser “de fora”. Nunca vou esquecer daquele colega que desmentia o fato de ser congolês para evitar ser “apedrejado” na escola. Foi após o episódio que entendi que ser africano era motivo de chacota. Ou melhor, era temível.

Em 2016, lembro que na primeira apresentação do grupo TropeirÁfrica no programa The X Factor Brasil, na Band, uma frase ecoou por todo o país em alto e bom tom: “A gente quer mostrar que África é ser feliz e ser alegre”. Me recordo de ter ouvido com orgulho e de ser um ano antes de eu descobrir o que é xenofobia.

No último ano do ensino fundamental, entendi que tudo aquilo tinha um significado. Estava ali na minha frente, no quadro de avisos da escola: “Xenofobia, preconceito contra o que vem de fora”. Ali, aos meus 14 anos, recapitulei tudo o que eu e meus colegas africanos havíamos passado em todos aqueles anos, e tive certeza de que aquele comportamento era fruto de uma educação infundada.

O buraco era mais embaixo. Aqueles alunos não tinham conhecimento sobre outras culturas. Os que viviam nas comunidades próximas à escola — e que mais reproduziam aquele comportamento — não conheciam a cultura africana. Era, e é, uma problemática enraizada na sociedade brasileira.

Antes de mim, eles

Quando meu pai chegou ao Rio de Janeiro em 1993, ele permaneceu mesmo que seu destino fosse um país europeu. Ele se apaixonou pela cidade e pelos brasileiros. Mal sabia que teria pouco espaço no país. As novelas, os artistas e até a participação política brasileira em Angola foram atrativos para que ele viesse, mas o motivo foi outro.

No final dos anos 1980, houve uma guerra política em seu país natal. Ele viu de perto muitas pessoas morrerem e conta que a saída foi migrar para outro lugar: “A família não reagiu mal por causa das coisas que estavam acontecendo. É planejamento: o filho vai para a guerra e morre ou qualquer outra coisa pode acontecer. Se eu ficasse lá, poderia acontecer uma coisa ruim. Vocês, brasileiros, não sabem o que é guerra.” Porém, isso não resumiu sua vida em Luanda.

Ouvir sua mãe cantar e tocar piano era, sem dúvida, seu melhor momento. Isabel o fez se interessar por música. Ou melhor, toda a sua família, que também tinha uma banda. Foi acompanhando os ensaios da Líder Música, no quintal de sua casa, em Kinshasa, no Congo, que ele aprendeu a tocar violão e bateria. “O quintal era grande. Tinha um espaço onde tinha uma árvore e a gente colocava um banco, uma mesa e um papel em cima para eu tocar bateria”, relembrou Zola, que, após entrar no grupo, passou a improvisar o instrumento para ensaiar. Foi então que decidiu trilhar o caminho que o reservava.

Meu pai é músico até hoje. Ele está destinado à sonoridade africana, mesmo sendo difícil emplacá-la no Brasil. Já minha mãe tomou outro rumo quando chegou aqui em 2000: embora com poucas oportunidades em um país com emprego escasso, seguiu na enfermagem. Os dois não conheciam nada, mas estavam esperançosos por uma vida melhor. 

Meu pai durante show no Viaduto das Artes em Belo Horizonte

A expectativa custou demais. A vida aqui era — e ainda é — difícil, dizem, mas alguns brasileiros os acolheram de alguma forma. Sem ganhar um bom salário com o trabalho, eles não puderam me matricular em uma escola privada. Por isso, todo o meu ensino foi na rede pública.

O que aprendi

Não me arrependo de ter feito parte daquela escola, apenas lamento ter vivido tudo aquilo. Sinto pelos meus colegas, pela minha comunidade, família e até pelos brasileiros. Não por terem agido daquela forma, mas por reproduzirem preconceito por falta de conhecimento. Ninguém teria aquela atitude contra um europeu. O Brasil conhece a cultura.

Durante a minha infância, percebi que muitos brasileiros acreditam que todos os africanos são angolanos. No Rio de Janeiro, pelo menos, quem fala lingala é angolano. No entanto, Angola é só um dos países do continente e sequer fala esse dialeto. O português é sua língua materna, mas parte do Brasil parece não saber disso — muito menos da existência da República Democrática do Congo, país de meus pais e de uma extensa comunidade africana no Rio.

Não são apenas os estudantes que não sabem o que é Xenofobia, adultos também não entendem a importância de outras culturas. São pessoas que, na escola que cito ao longo do texto, vêm de comunidades, onde o colégio é a única fonte que pode proporcionar este ensino, assim como foi comigo.

É preciso investimento tanto na capacitação dos professores, quanto na infraestrutura escolar. É assim que os estereótipos culturais africanos por parte dos brasileiros vão mudar. Eles precisam saber que não existe uma cultura mais “respeitada” do que outra — todas são importantes. África é alegria, não sofrimento. O Congo tem uma linda cultura e, hoje, eu tenho a oportunidade de falar sem ter medo de sofrer rejeição. 

Em 2019, no Ensino Médio, senti que precisava me afirmar, reconhecer quem sou. Foi quando minha turma fez um trabalho sobre o Reino do Congo. Decoramos a sala de aula com panos e roupas africanas, e chamei meu pai para cantar suas músicas em lingala. Quem esteve presente conheceu um pouco da minha cultura.

Apresentação do trabalho no Colégio Estadual Júlia Kubitschek

O que antes eu jamais teria coragem de fazer, naquela ocasião eu fiz. Pela escola, pela minha família, pelos meus amigos. Por mim. Naquele momento, senti que parte dos estereótipos foram quebrados — mas a ferida segue aberta. Ainda há histórias para recontar.


Amanda Zola (aluna da Escola de Comunicação da UFRJ)

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