Um campo de refugiados é sempre um local de abrigo. Pessoas que tinham projetos de vida em seu país de origem, após vivenciarem uma experiência traumática de ruptura, são obrigadas a abandonar tudo em troca da sobrevivência. Ao fugirem para um novo país e obter o status de refugiado, carregam apenas a esperança de reconstruir a vida.
O Campo de Refugiados de Dzaleka situa-se no Malawi, um país muito pobre e com poucas riquezas naturais. O campo foi criado em 1994 para receber os refugiados do genocídio de Rwanda. Desde então, foram chegando pessoas de diferentes partes da África e hoje possui uma população majoritariamente composta por refugiados da República Democrática do Congo. Esse país, ao contrário do Malawi, é rico em recursos minerais. No passado era o ouro, depois vieram os diamantes e hoje é o Cobalto, matéria-prima encontrada nos nossos principais aparelhos eletrônicos, principalmente nas baterias. A luta pelo controle da extração dessas riquezas fez com que grupos paramilitares sequestrassem crianças, seja para transformar meninos em soldados ou meninas em escravas sexuais. Milhares de mães fugiram com seus filhos, enquanto os homens eram mortos pelos grupos que disputavam o controle das minas. O Dzaleka se tornou um dos principais refúgios de toda essa gente. Sua população, que no início era de aproximadamente 10 mil pessoas, chega hoje a quase 60 mil refugiados. Toda essa gente é majoritariamente constituída de mulheres e crianças.
E é aí surge o grande drama desse campo. São aproximadamente 30 mil crianças em idade escolar perambulando pelas vielas. Poderiam estar nas escolas da rede estatal do Malawi. Mas o governo se nega a fornecer-lhes educação pública gratuita devido aos escassos recursos existentes no país, que não consegue dar conta nem dos cidadãos malawianos. Pior ainda, por determinação do governo, nenhum refugiado pode deixar as fronteiras do campo, principalmente os adultos para trabalhar. Isso geraria competição em termos de trabalho e renda com as comunidades locais. Aquele território, que foi espaço de abrigo, é hoje um local de confinamento, de apagamento de sonhos de um futuro melhor. A sobrevivência conquistada se tornou obstáculo para a reconstrução da vida.
Nesse sentido, diversas organizações humanitárias vêm procurando oferecer apoio à essa imensa população. E a escolarização para todas as crianças e jovens é uma das ações possíveis. A brasileira “Fraternidade sem Fronteiras” é uma das ONGs que oferece educação gratuita (na Ubuntu Nation School), da pré-escola ao ensino fundamental e futuramente médio. O Jesuit Refugee Service (JRS) oferece escolarização do Ensino Fundamental ao Médio e o Jesuit Worldwide Learning (JWL) ensino superior no formato EAD. Entretanto, o conjunto dessas escolas não é capaz de absorver toda a demanda por educação. Por isso, as salas de aula invariavelmente possuem de 60 a 120 estudantes. Além desses sistemas que contam com financiamento externo, existem refugiados-educadores que abrem escolas privadas cobrando pequenas quantias apenas para pagamento dos professores. Eles garantem que se alguém tiver dificuldades pode negociar. Mas o fato é que nessas escolas as condições são muito precárias em termos de infraestrutura básica. Muitas não têm mobiliário e as crianças sentam-se no chão. As salas que são construídas com tijolos de adobe feitos no campo, não tendo iluminação. Algumas conseguem tijolos vazados para abrir pequenas janelas por onde entra a luz.
Conheci Abraham em julho de 2023. Pessoa extremamente sonhadora e com muita fé na educação. É um refugiado que abriu sua própria escola com duas salas de aula. Chama-se: Eagles Junior Academy. Luta bastante para oferecer algo melhor para suas crianças e dar a elas boas condições de aprendizagem. Quando ele as encontra nas proximidades da escola, puxa o grito de guerra: “Eagles”. E elas respondem: “We can fly”.
Abraham bateu à porta da Fraternidade sem Fronteiras pedindo ajuda para suas crianças. Conseguiu carteiras para que elas pudessem sentar e escrever, além de uma boa reforma nas instalações. Muitos padrinhos brasileiros doaram os uniformes, símbolos de pertencimento e de status na comunidade. Abraham trabalha incansavelmente para que suas crianças se tornem águias e consigam voar com suas próprias asas. Mas todo esse esforço educacional, que diferentes atores estão performando, pode se tornar inútil. O que fazer se as perspectivas futuras não possibilitarem um engajamento dessas crianças num futuro que as permita participar de forma produtiva da sociedade que lhes concedeu abrigo? Esse é o drama vivido por todos no Dzaleka. Os refugiados estão a salvo da barbárie de seus países de origem, mas condenados a viver o resto da vida numa prisão. E essa realidade de refugiados possui similaridades em diferentes países.
Aquelas crianças poderão até sonhar em voar como águias no futuro, mas não conseguirão ir muito longe se nada mudar. Essa pode ser antítese da parábola da águia e da galinha, na qual uma águia é criada num galinheiro e assume a identidade das galinhas, sem perceber que pode voar mais alto e mais longe. No Dzaleka as crianças foram abrigadas de predadores no galinheiro. Mas estão sendo educadas como águias. Sabem que podem voar. Mas poderão ficar confinadas no galinheiro para sempre se nada for feito para romper as cercas que lhes foram impostas. Tenho fé que elas encontrarão saídas. Só espero que sejam pacíficas.
Marco Braga é professor do Cefet-Rj e trabalha com projetos de educacao que nascem das comunidades onde os estudantes estão inseridos.
0 comentários