Como o multiculturalismo que origina o auge da seleção francesa de futebol explica a crise migratória vivida pela França na década de 1990 e anos 2000
Em um país que chamou atenção recentemente pelas conquistas no futebol, comandadas por Zinedine Zidane e Kylian Mbappé, a extrema-direita francesa chocou o mundo após vencer o primeiro turno das eleições parlamentares, realizadas em julho deste ano. O grupo obteve 33% dos votos, enquanto as siglas de esquerda e o bloco centrista, comandado pelo presidente Emmanuel Macron, amargaram 28% e 20% dos registros, respectivamente.
O resultado fez com que o chefe do Executivo da França sugerisse uma aliança ampla entre “candidatos republicanos e democráticos” visando o segundo turno. A súplica centrista foi positiva para Macron, que, ao fim do pleito, conseguiu ocupar o maior número de assentos da Assembleia Nacional. No entanto, mesmo com a derrota, a direita dobrou a representação política em âmbito nacional, e reapresentou para o resto do globo um antigo sobrenome francês: Le Pen.
Marine Le Pen já é carta marcada na França. A política concorreu por três vezes à presidência do país pelo Reunião Nacional (RN), partido de extrema-direita que lidera, e registrou 41% dos votos na última eleição – o maior número já computado pela candidata. Porém, a sua história política se inicia antes mesmo de nascer, já que ela carrega consigo o legado do pai, Jean-Marie Le Pen. O que liga a história de ambos, além dos óbvios traços genéticos, é a perseguição contra imigrantes e refugiados em um país marcado pelo multiculturalismo, símbolo de uma seleção francesa vencedora.
Os Le Bleus colecionam, em um intervalo de pouco mais de duas décadas, duas conquistas da Copa do Mundo, em 1998 e 2018, e um vice-campeonato, ocorrido em 2022, comandados por um filho de argelinos, na primeira oportunidade, e por um jovem promissor com ascendência camaronesa, na segunda. Curiosamente, os títulos guiados pelo slogan “black-blanc-beur” (preta-branca-árabe, em tradução livre) aconteceram no mesmo período que o país viveu duas das maiores crises migratórias já registradas por lá, assinadas, também, por Le Pen.
Sans-papiers e La Haine: como funcionava a França da década de 90?
Na década de 1990, a sociedade burguesa e branca francesa enfrentava um nível crescente de tensão social devido a movimentos migratórios surgidos da descolonização de países africanos e do Oriente Médio. Esses povos vinham à antiga metrópole em busca de uma vida melhor, devido a guerras em curso, perseguições e condições econômicas insustentáveis. No entanto, quando se encontraram na França, muitas vezes viviam em más condições: encontravam dificuldades para arranjar emprego, educação e acesso a serviços públicos.
Comunidades, formadas por imigrantes e descendentes, residiam sobretudo nos subúrbios do país. Assim, a crise migratória inflamou ainda mais a questão em uma sociedade que já estava profundamente polarizada. O ressentimento contra os imigrantes – e, muitas vezes, filhos de imigrantes nascidos na França – assumia a forma de xenofobia.
Em 1993, o ministro Charles Pasqua afirmou que a França “não queria mais ser um país de imigração”, resultando na Lei Pasqua, que restringiu benefícios sociais para imigrantes, estabeleceu expulsões automáticas e dificultou a regularização de estrangeiros casados com cidadãos franceses. Nesse contexto, surgiu em Paris o movimento dos sans-papiers (sem papéis, em tradução livre), que politizou a discussão sobre imigração e se tornou central para a extrema direita, liderada por Jean-Marie Le Pen – cuja filha retomaria a discussão anos mais tarde. O movimento realizou greves e manifestações e permitiu a regularização de imigrantes no país.
O filme La Haine (1995), de Mathieu Kassovitz, sintetiza como vivia a sociedade francesa da década de 1990. Os protagonistas Vinz, Saïd e Hubert representam diferentes experiências de vida, mas todos enfrentam o mesmo dilema: a luta por identidade e aceitação em uma sociedade que frequentemente os marginaliza. Através das suas interações, o filme ilustra a alienação que muitos jovens imigrantes sentem, criando uma conexão direta com as questões da crise migratória.
A violência mencionada em torno de La Haine é tanto física quanto simbólica. Embora a brutalidade policial tenha sido projetada para simbolizar a opressão institucional, a reação dos personagens é uma manifestação de resistência. Além disso, as revoltas que precederam a narrativa do cinema são baseadas em eventos reais, como a morte de jovens durante os confrontos com a polícia. Petrie sugere que a morte do barraco inspirou Kassovitz a criar o filme, evidenciando a conexão entre a marginalização social e a reação violenta da juventude. Além disso, a ambiguidade do final aponta para o espectador que questiona o ciclo da violência e a perspectiva de que nada vai mudar.
Zinedine Zidane, um ícone fora dos padrões
É interessante observar como o futebol pode ter efeitos na sociedade. Em 1998, a seleção francesa viveu seu auge, após vencer a Copa do Mundo no próprio país. O símbolo daquela conquista foi Zinedine Zidane – meio-campista nascido em Marselha no seio de uma família de origem argelina. O atleta foi o pilar esportivo da competição, e marcou um dos gols decisivos da final diante do Brasil. O papel de Zidane, no entanto, simbolizou também a difusão de uma ideia de integração nacional.
A equipe, que conquistou o título inédito francês, ficou conhecida como“black-blanc-beur”, devido à mistura étnica da seleção. O time contava com jogadores que, mesmo de origens diversas, representavam um único país. Além de Zidane, haviam ainda Marcel Desailly, nascido em Gana, Patrick Vieira, de Senegal, além de Lilian Thuram e Thierry Henry, de Guadalupe, envolvidos no plantel convocado pelo técnico Aimé Jacquet. A miscigenação embalou os festejos da vitória no campeonato mundial, quando jovens do subúrbio se misturaram com a elite da Champs-Élysées. No bairro nobre, uma imagem de Zidane com a frase “Zidane presidente” foi exposta pelos fãs.
Luis Felipe Abreu, doutor em Comunicação pela UFRGS, entende que a seleção francesa é a “síntese” perfeita do nacionalismo. O professor vê que esse conceito é muito novo e frágil, mas que ganha sentido quando “11 homens vestem uma camisa e lutam por uma bandeira”. Segundo ele, em 1998, o lado progressista do país dizia que a França venceu por conta dos estrangeiros, enquanto o lado de Le Pen apresentava um dos projetos mais extremistas em relação ao tema dos imigrantes.
“O ser francês realmente é ameaçado em movimentos migratórios, pois há um encontro de culturas diversas. Afinal, os costumes e outros pontos que compõem as diversas sociedades se cruzam, e desencadeiam em um novo resultado. Provavelmente, a ideia de como é ser francês de 200 anos atrás é diferente da ideia que se tem hoje sobre o assunto. O problema está na maneira como a extrema direita lida com o tema, colocando medo na população, como se esse intercâmbio fosse necessariamente ruim. É daí que surgem os movimentos conservadores. A seleção de 98 foi ponto chave para essa discussão, pois lá estavam indivíduos de diversas culturas, nascidos também na África, representando uma bandeira”, acrescentou o pesquisador.
Essa ideia de uma nação etnicamente plural é ainda vendida pela França com o uso do esporte. Após 20 anos da primeira conquista, a seleção francesa venceu novamente a Copa do Mundo, dessa vez com uma equipe ainda mais diversa. Dos 23 atletas convocados, apenas quatro tinham origens totalmente francesas, inclusive o craque Kylian Mbappé. No entanto, enquanto a equipe de futebol aumentou as raízes africanas e árabes, as tensões e movimentos anti-migratórios tiveram seu estopim.
O que é ser francês? A lei de nacionalidade francesa e Valentina Bandeira
A lei de nacionalidade francesa pode ser confusa. Por lá, a nacionalidade é fixada tanto pelo laço sanguíneo, quanto pelo local de nascimento. No entanto, a legislação diferencia quem é francês nato, desde o nascimento, dos cidadãos naturalizados. Um exemplo que temos em território nacional é a influenciadora digital Valentina Bandeira, filha de dois brasileiros que se conheceram na França. Apesar de ter nascido em Paris, capital francesa, ela nunca foi considerada uma francesa “legítima”, por não ter sangue francês na família, a influencer não cumpriu os requisitos impostos pela Constituição do país europeu. Lá, o que é colocado em voga pela lei o jus sanguini e jus solis.
O termo jus sanguini deriva do latim e significa “direito de sangue”. Esta expressão garante que o indivíduo tenha direito à cidadania do país pela sua ascendência. Sendo assim, caso a pessoa tenha ascendência francesa na árvore genealógica, ela consegue a cidadania francesa. Sobre jus solis, assim como a anterior, a expressão deriva do latim e significa “direito de solo”, permitindo a quem nasce na França também obter a cidadania francesa após concluir 18 anos.
De forma direta, tem direito à cidadania francesa uma pessoa que é: filho ou neto de alguém nascido em território francês; quem nasce e permanece na França; alguém com, no mínimo, 3 anos de matrimônio com um cidadão francês pode requerer a cidadania francesa; estudantes que fizeram um curso de ensino superior no país; e por fim, um indivíduo que mora em território francês durante 5 anos consecutivos de forma regular.
Em maio de 2023, Valentina participou do podcast Podpah e desabafou com os entrevistadores sobre a dupla nacionalidade: “Eles são tão xenofóbicos que fazem uma lei que a pessoa só pode ser considerada francesa, caso ela tenha sangue francês”. Os pais de Valentina são dois brasileiros que se conheceram na França, mesmo tendo nascido na Cidade Luz, ela veio para o Brasil com dois anos, sendo criada no Rio de Janeiro. A influenciadora afirma que poderia ter tentado fazer o processo de dupla nacionalidade, mas não quis.
Ao retornar ao Brasil, os pais de Valentina optaram por matriculá-la numa escola francesa localizada em Laranjeiras, área nobre da zona sul do Rio. Durante a conversa, ela demonstra uma certa mágoa quando fala sobre este ambiente escolar. “Era uma comunidade francesa, mesmo. Uma ilha! Com muito pouco acesso ao Brasil de verdade… Eu me sentia muito mal lá.” Fica nítido que a influencer se incomodava com o sentimento de viver numa bolha elitizada, onde, segundo a própria, existia um sentimento de superioridade dos franceses que compunham o antigo colégio dela.
Novos movimentos migratórios e a politização no futebol
Após a conquista da Copa América pela Argentina, jogadores do país foram flagrados provocando jogadores da França, ao afirmarem que eles vinham de Angola. Em resposta, a equipe Le Bleu afirmou que eram franceses, “mas nossos pais vieram de Angola”. Essa foi apenas uma das mensagens políticas do grupo de jovens jogadores, campeão e vice-campeão das Copas do Mundo de 2018 e 2022, respectivamente. Se anteriormente o símbolo da nação era um argelino, agora um filho de camaroneses ocupava esse posto.
Kylian Mbappé, ao lado de Jules Koundé, fez publicações que indicavam as controvérsias e falas polêmicas de Le Pen, durante as eleições de 2024. O futebolista pediu para que os eleitores votassem “certo”. As falas não foram bem recebidas por Marine, que rebateu: “Mbappé não representa os franceses com antecedentes de imigração, porque há muito mais deles a viver com o salário mínimo, que não têm condições de pagar habitação e de aquecimento”. Dessa vez, não é possível negar a influência do craque na sociedade, então políticos usam o sucesso financeiro do atleta como bengala para os ataques.
A escalada dos ataques vai de encontro ao novo pacote anti-migratório aprovado por Macron e endossado pela direita francesa. Além disso, em outra parte do globo, Donald Trump ganha força novamente e se elege novamente como presidente dos Estados Unidos, com discurso também contrário aos imigrantes. Se antes os jogadores não se viam como fundamentais no debate, hoje devem ser porta-vozes de uma classe que não só os pertencem, como contam também a própria história.
“O panorama para o futuro é ruim. Mas é importante sempre lembrar que, em todo grande movimento extremista, há sempre um contramovimento. Dessa vez, a seleção pode – e deve – representar novamente esse papel no debate público”, concluiu o professor Luis Felipe Abreu.
Por João Marcelo Ferreira Rodrigues e Victor Bastos, estudantes da disciplina de Laboratório de Cidadania, do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ministrada pela Profa Fernanda Paraguassu.
Sob supervisão de Fernanda Paraguassu.
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