A ideia de publicar um livro em portunhol surge de nosso estar na fronteira, na cidade de Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai) onde as culturas, as línguas e a imigração vem crescendo ano a ano. Hoje, no município de Foz de Iguaçu residem mais de 21.000 migrantes, muitos deles do Paraguai, da Venezuela e do Líbano.
Nas escolas do município de Foz do Iguaçu, na atualidade estão matriculadas mais de 600 crianças vindas de diversos países da América Latina e o Caribe, principalmente da Venezuela e do Paraguai, no ensino fundamental (de 1° a 5° ano) da rede pública da cidade. Muitas dessas crianças atravessam a ponte diariamente para estudar em alguma das 50 escolas de ensino fundamental da cidade.
As autoras pesquisam sobre esse impacto na fronteira. Jorgelina enfocada mais às questões do portunhol, à mistura do espanhol com o português mas também com o guarani, com o árabe e as tantas línguas que atravessam esta fronteira. E Renata estuda as políticas linguísticas de famílias plurilíngues estabelecidas na fronteira, isto é, como se dá o processo de seleção, transmissão e prática das línguas em famílias linguística e culturalmente híbridas e como isso se reflete em outros domínios como a escola.
Karla, editora da Pipa, conta que “A língua de todos e a língua de cada um” chegou quase pronto à editora, com ilustrações incríveis da Laura Zanon, a terceira autora da obra. Sim, as ilustrações dão vida à narrativa tanto quanto o texto que apresenta de forma encantadora os sentimentos de uma criança imigrante que fala uma língua diferente da que é ensinada na escola. Uma história sobre angústias e sobre possíveis soluções para que a criança não se sinta só, conta a Karla.
A personagem é inspirada nas histórias de imigração das escritoras Renata que convivem com experiências muito próximas das narradas no livro.
A Nina chegou na editora ainda sem nome e logo a Karla trabalhou para montar uma enquete no Instagram para escolher o nome da personagem. Entre 96 votos, Nina foi o nome mais citado pelos seguidores.
A criação da personagem aconteceu em coletivo. A escolha sobre as características, penteados, roupas e cores foi feita a partir do diálogo sobre quem é a Nina. Esses detalhes representam a pluralidade de sentimentos da personagem e seu amadurecimento. Logo, a Nina é apresentada através da sua identidade racial e linguística. Assim, sua caracterização também conta sua história.
As ilustrações foram criadas pensando no sentimentalismo, acolhimento e identidade da obra. A Nina representa muitas crianças negras e migrantes e as tornam protagonistas de suas próprias narrativas.
Após alguns meses de trabalho chegamos a soluções para tornar a impressão viável e também para disponibilizar a obra em formato digital na Amazon. Rodamos uma primeira tiragem de teste com 100 exemplares que acabaram no primeiro lançamento presencial com participação das autoras. Esse lançamento foi organizado pelo setor de cultura da Prefeitura de Foz do Iguaçu e contou com a participação de crianças que ficaram encantadas com a possibilidade de conversar com as autoras.
Depois do primeiro lançamento uma nova tiragem de 1.000 exemplares foi impressa e o livro segue sendo distribuído e circulando em escolas e pelas mão das crianças de todo o país.
A primeira edição lançada apresenta uma Nina falando o portunhol que apresenta características da língua portuguesa e da língua espanhola. O primeiro texto foi escrito em portunhol com predominância do português. Em 2023 foi lançada uma versão digital em portunhol com predominância do espanhol que pode ser adquirida na Amazon. Foi escrita para circular na Argentina e no Paraguai, países que junto com o Brasil compõem a tríplice fronteira.
A Nina representa, de certa forma, muitas crianças imigrantes que chegam na escola sem saber falar a línguas de todos. O livro, então, expressa a importância e a necessidade de acolher e se sentir acolhido a partir das línguas e em todas as línguas. Jorgelina e Renata fazem a contação da história nas escolas para inspirar muitas crianças a perceber o mundo com os olhos da Nina e, com um tutorial elaborado pela Laura para os leitores aprenderem a ilustrar a protagonista, promovem oficinas em que as crianças são incentivadas a dialogar e produzir juntamente com as criadoras da história.
Nesses encontros na escola e nos debates promovidos nas universidades, é interessante perceber como o livro traz razões legítimas para conversar com as crianças sobre a importância da afetividade no acolhimento da pluralidade, da diversidade na escola e na vida. Bem mais que isso, essas razões permitem que as pessoas se tornem mais ternas, criativas, ousadas, destemidas, já que a oportunidade de conhecer e arriscar na comunicação em mais línguas nos afeta e nos impulsiona a transpor fronteiras.
O livro repercutiu nas escolas de fronteira, trazendo outras questões indispensáveis para que a planificação e a execução do ensino contemplem projetos de vivência multilíngue, como a necessidade de olhar para a diversidade e reconhecendo-a e legitimando-a como fonte de sabedorias que podem e devem ser compartilhadas. É preciso admitir que as interações entre diferentes culturas, sobretudo as afetivamente construídas, podem favorecer o desenvolvimento das crianças e de todos a sua volta, consolidando laços e assim, ampliando o senso de alteridade. Nesse sentido, transliguar é preciso, para promover a tolerância e o respeito mútuo na construção de uma sociedade mais inclusiva e igualitária das pluralidades.
“La lengua de todos pode ser la lengua de nadie cuando las personas no se entiendem.”
Por Jorgelina Tallei, Renata A. de Oliveira e Karla Vidal. Jorgelina e Renata são autoras do texto de “A língua de todos e a língua de cada um”. Karla é editora da Pipa Comunicação.
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